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Ano 1 - Nº 2 - Ubatuba, 06 de Dezembro de 1.997

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O bodoque do João Braz
Herbert José de Luna Marques
hmarques@iconet.com.br

A rua Cunhambebe pelos idos de 1.940 era um caminho que ia até a casa do Lazareto, já na boca do mato para a fazenda da Lagoa, esta abandonada que estava já há muito, pois seus donos haviam se mudado para São Paulo sem deixar ninguém que tivesse coragem de explorar aquele caxetal sem fim.
Por sua feita o Lazareto também havia fechado por falta de pacientes e ninguém queria ocupar aquela casa, certamente com medo de contrair a doença maldita, que era a lepra.
João Braz morava naquelas bandas. Solteirão por convicção ou por falta de mulher, fazia cestos com incrível habilidade, levando seu produto todo fim de semana até o centro da cidade, oportunidade em que aproveitava para pegar água no chafariz, em seu inseparável garrafão, e amarrar uma homérica bebedeira em via sacra pelos armazéns do Luiz-Que-Qué, do Ponciano, bar do Povo e padaria do Romoaldo, onde um pão sovado já amarrotado e endurecido, iria fazer parte da matula que seguiria para sua casa.
Afoito por natureza, corajoso por índole, João Braz não deixava de incluir em sua vinda à cidade, uma passagem pela casa da Chanda, mulher vivida e conhecedora de todos os solteirões que caminhavam nas sombras das noites pela cidade, na busca de um calor a mais que não fosse o noroeste em mês de novembro.
Descrente de Deus, João Braz desafiava a todos assistirem um confronto dele com o Satanás lá pelos seus lados, já que se encontrava sempre com ele toda vez que ia para casa, principalmente nas noites de lua cheia, quando sua visão era mais clara e o Demo aparecia com mais esplendor em sua roupa vermelha carmim, com seu tridente de cabo de guapurubu novo e dentes amarrados com cipó de embira.
Certa noite João Braz insistia muito em seu desafio até que Quintino, não menos encharcado, topou o desafio de acompanhá-lo. Matula pronta, pão debaixo do braço, Braz solicitou do amigo esperasse por algum tempo que iria entregar uma encomenda à Chanda, pegar seu indispensável bodoque que deixava sob sua guarda, e a seguir iriam para a expedição maldita.
Trato cumprido, equipamento à mão, partiram os amigos na escuridão da noite, sob o olhar da caridosa rameira que benzeu-se por três vezes para esconjurar o Satanás e proteger o amigo que tanto lhe servia nas noites chuvosas, embora o bafo fosse de amargar.
Mais de meia hora passada, já passada também a casa do Lazareto, os dois amigos caminhavam sem que vestígio do Satã aparecesse, o que não era bom negócio para o Quintino, que com isso teria que pernoitar por aquelas bandas, já que o João Braz não tinha condições de voltar com ele para a cidade e sozinho é que não viria.
Certo momento piou o agouro de uma suindara, logo a seguir outro pio e finalmente um barulho de alguém que saia do mato e um vulto enorme, escuro, perfeitamente identificado pelo Braz como o ele, oportunidade em deu um paço para traz puxando o companheiro, largou o que tinha na mão ficando só com o bodoque e, com um movimento rápido, tirou uma pedra do bolço direito, esticou a corda e arremessou ouvindo-se imediatamente um barulho oco e um grito de quem havia sido atingido em local certeiro e letal.
Imediatamente o vulto penetrou com violência na mata, uivando outras três vezes até desaparecer o som de sua voz e o barulho de seus passos.
João Braz calmamente abaixou-se, pegou seu garrafão de água, seu pão amassado, sua sacola de compras e com sua voz grossa disse ao seu amigo: "Vamo embora Quintino que agora ele só volta semana que vem."Fim do texto.

Anos Dourados
Settembrini
articulista@ubaweb.com

Havia borboletas azuis
na manhã de dezembro
de mil novecentos
e sessenta e nove
quando nos despedimos
em nossa formatura
na porta do Cine Iperoig.

O mundo era um velho casarão
de corredores estreitos
e nossos sonhos habitavam
casebres na beira da praia.

O Brasil reluzia em verde oliva
e as canções percorriam as ruas
de punhos fechados ou de margaridas
levados em peitos livres
e cochas desinibidas.
O tesão travava combates
com a morte em porões.
A lua embriagada
atravessava ruas de areia
e amanhecia de ressaca
sob o sol preguiçoso.

Havia borboletas azuis
naquela manhã de dezembro
de mil novecentos
e sessenta e nove.
O sol escorria palmeiras
pelo teu corpo porcelana.
Já havia promessas de ninfa
em teus olhares oblíquos.
Depois vieram muitas luas
e madrugadas solitárias
de canções arranhadas
entre conformados sofás
e o riso e as palavras
amanheciam quebradas
e vazias à beira mar.Fim do texto.
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