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Ano 1 - Nº 6 - Ubatuba, 15 de Março de 1998
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· O velho e os violinos
    Ricardo Yazigi
    ryazigi@iconet.com.br

 
Um dia, estava eu a andar pela rua em que nasci, em São Paulo, quando de repente, um senhor de uns setenta e muitos anos, postado em frente a uma casa cuja fachada parecia não ver uma lata de tinta há várias décadas, encarou-me profundamente e disse:
- Rapaz, você toca violino?
Violino feito por Antonio Stradivari - 1700 Imediatamente me transformei em uma escultura, sem ação, levei vários segundos para retornar à realidade e com certa dificuldade respondi:
- Como o senhor sabe?
- Espiritismo, meu rapaz, espiritismo. Entre que vou lhe mostrar algo.
A oficina do Sr. Nacib ficava na garagem de sua casa situada no fundo do terreno. Aparentemente era organizadamente bagunçada e parecia com uma oficina de consertos de bagulhos.
- Veja isso - disse o velho. Com certa dificuldade apanhou uma caixa judiada que continha o violino mais belo que eu já havia visto.
- Meu deus - disse eu - é uma obra prima.
- Fui eu mesmo que o construi - disse com certo orgulho, o velho Nacib.
Havia mais de um ano que eu estava a procura de alguém especializado em luteria (fabricação de instrumento de corda) e repentinamente surge do nada, um velho maluco que me chamou pelo espiritismo. Sempre tive a convicção de que acharia alguém para consertar meus violinos e ao mesmo tempo me ensinar um pouco dessa arte em extinção, mas jamais imaginei que seria assim.
- O que você faz, rapaz?
- Sou engenheiro civil - respondi.
- Um sofredor como eu, aposto que também estudou no Mackenzie.
- Por mais incrível que possa parecer, estudei.
- Que belas coincidências. Foi Deus que o trouxe. Estou velho, pobre e sem amigos e de repente encontro alguém com quem eu possa conversar. Não me diga que também faz cálculos estruturais. - arriscou mais uma vez, o velho adivinhador.
- Faço sim, mas por quê? - respondi atônito.
- Eu também fui calculista, o primeiro a utilizar o método de Cross (método utilizado em cálculos estruturais) no Brasil, para calcular um estádio de futebol. Na inauguração recebi até homenagens. Fiz muitos cálculos de obras que ficaram famosas.
Sem dúvida era um dia especial para mim, conhecer alguém tão mais velho e com tanta afinidade, era fascinante.
- Qual seu nome, meu rapaz?
- Ricardo Yazigi.
- Poxa, o que o professor Elias era seu? - perguntou ansioso.
- Era meu avô - respondi já esperando mais alguma.
- Veja só, eu era amigo de seu avô. Jogávamos tênis juntos. Seu avô era um grande homem.
Depois de tantas coincidências comecei a refletir sobre os grandes poetas que tratam as casualidades como coisas místicas, incompreensíveis, inatingíveis.
Após recuperar-me de tantas emoções pedi ao velho Nacib que tocasse algo.
- Não sei se posso, minha hérnia não deixa. Maldita velhice.
Rapidamente sua face se transformou. Empunhou o violino com uma intimidade invejável, pôs-se a afiná-lo e começou a tocar. Suas mãos flutuavam, os sons eram puros e sua agilidade ultrapassava os limites da experiência. Em toda minha vida jamais havia visto, ou mesmo imaginado, um ser humano atingir tal grau de perfeição. Seus dedos eram mais rápidos que meus olhos. Ao terminar, disse com a humildade do gênio:
- É de Paganini, estou um pouco enferrujado.
Fiquei imaginando que ferrugem era essa que, torna um ser, virtuose.
- Sr. Nacib, nunca ouvi nada igual - disse emocionado.
- Que é isso, rapaz, na época que eu era solista da rádio, tocava direitinho, mas agora esse velho já era - respondeu melancolicamente. Vou te dar um conselho. Violino se toca com a alma. Não pense em nada, toque com a alma.
- O sr. é de uma modéstia exemplar - respondi ainda comovido.
- Que tal conhecer meus outros violinos?
A coleção de violinos de Nacib era tudo que um violinista poderia querer. Exemplares de autores famosos misturavam-se com os de sua autoria, uma coleção eclética.
Tornamo-nos grandes amigos. Durante minhas visitas, tocava e me ensinava os princípios da luteria, sua técnica era impressionante. Sua saúde estava cada vez mais debilitada. Segundo ele, sua única alegria era me encontrar, ensinar-me e tocar para mim. Sentia-me orgulhoso, mas ao mesmo tempo me doía o coração ver um gênio terminar assim, pobre, abandonado, sem amparo.
Nacib se foi. Deve estar agora deliciando os anjos com seus solos de violino primorosos. Ou talvez esteja fazendo dueto com o próprio Paganini. De qualquer forma, tenho certeza que nos encontraremos de novo. E quando Nacib me perguntar como o achei, vou responder: - Espiritismo, seu Nacib, espiritismo...
Nota do Editor: História ocorrida em 1993.Fim do texto.

· Cine Iperoig
    Eduardo Antônio de Souza Netto
    articulista@ubaweb.com

Ubatuba, até meados da década de sessenta, era um lugar meio perdido, isolado em meio à Mata Atlântica, de difícil acesso, distante dos grandes centros urbanos. Vir para cá era uma aventura. Nesse isolamento, passamos a infância. De um lado, a mata atlântica, praticamente intocada, um oceano verdejante e, de outro, o Atlântico com algumas dezenas de praias e ilhas. Para a garotada de minha geração, a diversão era nadar, pescar, caçar passarinho, jogar futebol, taco, empinar papagaio, bolinha de gude, gibis e o Cine Iperoig.
Minha geração conheceu o mundo primeiramente por intermédio do rádio AM e do cinema. Crescemos ouvindo emissoras do Rio de Janeiro, em ondas médias - as de São Paulo, só em ondas curtas e o som era péssimo -, e assistindo filmes no Cine Iperoig, o único da cidade e o último. De um lado a cultura caiçara e, de outro, a do mundo exterior que nos chegava por esses meios de comunicação e que fizeram nossas cabeças para sempre.
As instituições que mais influenciaram minha infância: a cozinha da casa de vovó, a casa de meus pais, a igreja matriz, o grupo escolar Dr. Esteves da Silva e o Cine Iperoig. Com exceção da igreja e do grupo escolar, estes lugares me foram fantásticos. O Cine Iperoig foi, talvez, o meu templo sagrado.
O prédio ainda está lá, no centro histórico da cidade, de frente para a praça da igreja matriz e fundos quase que vizinhos do quintal da casa de meus pais. De meu quarto, podia ouvir o bater dos sinos da igreja, o som do Cine Iperoig, das músicas que tocavam antes das sessões e o do meu coração ansioso quando aproximava-se a hora de pegar uma matinê de domingo.
Não perdia um seriado daqueles em preto-e-branco, que antecedem o filme em cartaz e que semeavam fantasias em nossas cabeças. Brinquei muito de Flash Gordon, de Zorro, de Jim das Selvas etc. O bem versus o mal, mocinhos de um lado e bandidos de outro, sorteados no palito. Far west caiçara, com revólveres de raiz de ciosa (uma espécie de lírio-do-brejo). Aventuras nos desertos e selvas africanas, nas profundezas do oceano, no espaço, tudo isso nos quintais das casas, nas ruas, quase sempre desertas, e nos terrenos baldios, que eram vários.
Quase todas as manhãs de segunda-feira ia fuçar o lixo do Cine Iperoig, que era jogado num terreno próximo. Fazia coleção de papéis de balas e pedacinhos de fitas que eram jogadas fora. Passava horas em meu quarto, olhando-as meticulosamente, contra a lâmpada do abajur e então devaneava, sonhava acordado. Quando, recentemente, assisti o filme Cinema Paradiso, em vídeo cassete, sozinho em meu quarto, não me foi possível conter as lágrimas.
O prédio do Cine Iperoig, hoje, por incompetência política, está nas mãos da Igreja Universal do Reino de Deus, como um castigo para esta minha alma pecadora. "Só as coisas que perdemos vive eternamente em nós". Não sei de quem é esta frase, mas como é profundamente dolorosa!...Fim do texto.

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