Em alguns séculos atrás, as fazendas açucareiras de Ubatuba abastavam-se em divisas provindas da mão-de-obra escrava. Negros, arrancados de sua África como plantas arrancadas pelas raízes jogadas em outros lugares a espera de serem replantadas ou descartadas do direito de viverem. Não era difícil todas as noites se ouvir no terreirão da “Casa Grande” o pedido de misericórdia no ar, trazido através do som dos atabaques. Vinha de onde estavam os negros amontoados independente de sexo ou idade: a senzala. O machucado dos açoites, a falta de saneamento fazia proliferar doenças... Mas a maior dor, a dor mais insuportável era a falta de liberdade, a falta de reconhecimento de ser gente, a dignidade zero. - Eh! Eh! Buana, nego nasceu pá apanhá! - Dizia Preto Velho, para camuflar e desculpar a dor. Os lotes de negros comprados no Rio de Janeiro eram despejados pelos navios negreiros na praia de Ponta Aguda. Esses lotes aguardavam seus compradores no senzalão da praia da Lagoa. Para driblar a fiscalização à frente deste lugar erguia-se um cenário de “Casa de Fazenda” que nunca existiu. Quem olhava do mar tinha a certeza que se tratava de uma “Casa Grande” de fazenda, mas que nunca existiu. Era uma fachada para camuflar o senzalão. Dito Carro apeou do cavalo, chicoteou o ar para impor respeito, pisou forte. O barulho de suas botas arrepiava de horror qualquer criatura que o conhecia. Arrogante, o capataz bulia com os negros aos trancos, verificando a numeração das placas de cobre dependuradas nos pescoços judiados. Um sorriso maligno lhe percorreu a cara quando achou o lote que procurava. Dois machos adultos, uma criança de aproximadamente dez anos e uma moça com o julgo de quinze anos, ornada por um colar de ossos trançados em palha de embira, além da numeração. Dandara era seu nome! Dito Carro lambeu os beiços! Juntou uma mão na outra e estalou os dedos secos. Fez cantar o chicote com a força de um demônio. Arrastados aos trancos e barrancos os negros chegaram à fazenda destinatária. Dandara não tinha mais forças para agüentar tamanho suplício. Ferida e exausta se jogou num caco de esteira na senzala. No céu a lua apareceu. Dentre as frestas da taipa a luz do luar fez brilhar o colar de Dandara. Aconteceu um milagre! As chagas de Dandara se fecharam. Neste instante a porta da senzala rangeu com violência. Dito Carro adentrou em busca de Dandara a fim de satisfazer seu vil prazer. O inacreditável aconteceu, o colar de Dandara inflamou-se e as chamas produzidas pelo colar queimou as mãos enormes e malévolas de Dito Carro, que se jogou no chão uivando de dor. Dizem que pelo resto da vida esse meliante usou luvas para esconder as mãos sapecadas pelo fogo emanado do colar de Dandara.
Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.
|