|
Olhe, havia um tempo que parecia comum. Um tempo onde parecia simples, mas era apurado. As pessoas iam dormir sabendo que no dia seguinte tudo seria do jeitinho do dia anterior, sem muita novidade... Todo tempo era tempo de se trabalhar, de se festejar, de ser feliz, mesmo que a felicidade dependesse de muito zelo, assim foi assim será. Havia muito respeito com o sagrado, com coisa que não dava para ser explicada, portanto carecia de cerimônia. Assim como o profano, as pessoas camuflavam para não agredir os outros mais melindrosos. De primeira vinham as substâncias espirituais. Abaixo de Deus nada reinava sem seu consentimento. As coisas temporais se entregavam nas mãos dele. Se rezava para tudo. Acredita que até pra dar uma namoradinha se rezava também? Tudo era mais custoso. Aí se dava valor! O trabalho duro na roça, no mar, em casa não dava tempo pro povo fazer de sua cabeça uma oficina pro coisa ruim. Tinha meta, tinha produção a cumprir, dependia do sucesso dessa labuta para sobreviver. Tudo mundo era artesão na vida. Tudo era feito na mão... a casa, a comida, o remédio, a canoa, só filho que não, diziam que era arte do Criador. Assim a vida corria misteriosa e sem mistério! Todos os deslanchamentos da vida era contada a boca miúda para as crianças. Para ajuntar todo mundo, era só deixar a disposição delas uma peneira cheia de mangarito, batata doce ou mandioca cozida. Aí tome histórias... De lambuja vinham os adultos, os agregados, até os transeuntes hospedados na casa. Os problemas, assim como as soluções, surgiam nesse conselho de família. Ninguém se sentia sozinho. Depressão, solidão só existia nas histórias de pessoas que tinham acesso a livros, ou que ouviram contar quando viajaram para não sei aonde. Então tudo caminhava sem abismos. Como disse: havia respeito, consideração, ordem, obediência, paciência para ouvir e observar. Havia aprendizado de vida. Camaradagem e parceria. Esse tempo que vos falo, foi chamado de ATRASADO. Dizem que em terra de cego quem tem um olho é rei, a ganância veio incutir na cabeça de nossa gente que tinha que mudar. Por um sopro qualquer se deu o início de PROGRESSO JÁ! Olhe, ninguém sabia o que era, mas era uma palavra nova e bonita, e assediou todo mundo. Que venha o tal progresso a qualquer preço! O progresso não só veio, como engoliu o tempo que havia. Engoliu sem mastigar. A seco! Foi tão brusco que ele não se apresentou, tomou logo as rédeas e foi manipulando todo mundo. Era só pílula de progresso de manhã, de tarde e a noite, que as pessoas engoliam sem pensar em efeitos colaterais. Saboroooso... Pior, engoliram pílulas de progresso por ouvir falar, na leva... O efeito colateral apareceu, é isso que estamos vendo aí! O progresso nos jogou num grande tipiti chamado globalização. Estamos sendo levados para a prensa, para extrair o caldo. Que nem mandioca ralada. Acho que nossa civilização vai virar quisuco! E olhe, num sabor só! Vamos ser comandados, achando que estamos no comando. Simplesmente a gente segue o que o outro dita e pronto. Como diz a música: “GADO MARCADO”. Vai reclamar pra quem? Olha lá o ônibus... Ah, meu Deus, tá cheio de novo... Quando será que a gente vai ter o trem bala?
Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.
|