Trepado num pé de amendoeira Bidiquinho balançava nos galhos imitando com a boca os sons feitos pelos caminhões monstrengos da empreiteira Andrade Gutierrez que rasgava o morro da praia do Félix em Ubatuba para dar passagem à nova estrada a ser construída ali. A cachoeira que antigamente urrava desabando fartura de água, agora mijava respingos amarelados, como que sofrendo da bexiga. De vez, e sempre, o dia todo, os estouros de pedras alardeavam os moradores já expulsos de toda e qualquer paz. Os bombardeios ecoavam no infinito do mar. A casa simples tremelicava. Nada que incomodasse Bidiquinho que continuava brincando de gente grande fazendo asneiras em seu caminhão imaginário. Mas incomodado e pensativo estava um homem sábio. No auge de seus tantos e poucos anos, “daí pra laje”, como dizia ele mesmo, fingia que não era nada e dava continuidade ao reparo de redes. No perfiar de uma malha e outra, seu coração corroía de dor. Um sentimento que não podia dividir com ninguém. Era sabido que todos a sua volta não entenderiam sua angústia. Todos estavam embebecidos pelo progresso que chegava. Era o tal futuro fascinante pregoado pelo rádio de pilha. Novas oportunidades para seus filhos saírem daquele estado de letargia e pobreza. Era a civilização. Teriam casas de alvenaria, móveis de fórmica, água encanada, luz elétrica. O sofrimento de morar longe de tudo acabaria quando pudessem ir até a cidade e voltar no mesmo dia, e mais, de carro. Conheceriam pessoas novas. Falariam mais floreados como as pessoas da cidade. Ficariam importantes. Marcariam presença. Então como argumentar sozinho seu parecer a respeito. Assim pai velho passava os dias observando Bidiquinho aprontar as suas peraltices de menino, enquanto o mundo desabava sobre sua cabeça e dos seus. De lá da amendoeira o menino observava a tristeza do avô. Intrigado, desceu da árvore e foi ter com ele. - Pai velho, não gostou do meu caminhão? - Gostei, claro que gostei, Bidiquinho. - Por que te chamam de Pai Velho e não pelo seu nome que é vô Benedito? - Isso vem desde os tempos dos negros escravos. O avô é sempre considerado o mais sabedor das coisas. Mais até que o pai. Por isso Pai Velho. - O senhor não gosta da estrada nova que tão fazendo? - Eu não gosto do que essa estrada vai trazer pra nóis. - Como assim? - Nada nessa vida é de graça, meu filho. Tudo tem seu preço. Quando a esmola é demais o santo desconfia, não é mesmo? As coisas vão acontecer em doses como as doses curativas do Casemiro, aos pouquinhos. Mas esse é um remédio muito amargo. Tanto pode curar como matar. Depende de como será tomado. - Não tô entendendo, Pai Velho. - Você já pensou um dia ficar sem sua amendoeira para brincar? Pois, bem, essa estrada é uma serpente grandona que tá seduzindo todo mundo. Ela é uma roubadeira de mãos cheias. Acho que ela vem lá de uma cidade chamada, se não me engano... ganância. Ela é mais venenosa que uma urutu cruzeiro. Depois que ela passar, todas as pragas seguirão seu rastro. Ela vai fazê nóis corrê daqui com uma mão na frente e a outra atrás. Vamos depender do outros até pra aquelas coisas... E num passo de mágica, quem conheceu a liberdade, a paz, o sossego, vai morrer seco e esgalgado de tanta saudade. Quem não conheceu e só ouviu falar, vai correr atrás para saber como que era, e se existiu isso mesmo que conta a história. - Ah! Pai Velho, o senhor só conta causo esquisito, donde isso? - Arrelá esse menino, quem viver verá! Quem viver verá!
Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.
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