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Contos
13/07/2014 - 10h00
A bíblia
Marco Albertim
 

Juarez Canuto sentou-se à beira da calçada, incorporou-se ao cenário de papéis soltos e sujos, retraços de ossos de boi, carnes arroxeadas com moscas-varejeiras zumbindo festivas e vorazes, num banco de feira, arremedo de açougue; afora o fartum de cebolas e tomates com a polpa amolecida, e ainda com aparência de viço num lado ou noutro não infectado pela podridão. O varredor, apesar de o sol já ter coberto a pequena esplanada à frente, não começara a limpeza; se o fizesse, mesmo juntando o que havia de refugo pelo chão, num canto, adensaria a pestilência no ar sem vento.

As unhas de Juarez Canuto, dos pés e das mãos, ele as deixara crescer; não que fosse indiferente à higiene do corpo. Mas a tesourinha, ou mesmo um prosaico cortador de unhas, de algum tempo sumiram de sua valise com os escassos apetrechos de uso pessoal; sumiram rotas, enferrujadas, com as navalhas denteadas, cegas. Os cabelos crescidos, crestados até pelo negrume de suas noites à luz mortiça de uma lamparina a querosene, insurgiram-se em pontas compridas para cima, para os lados e para trás. Também o pente sumira da valise; menos mal, porque se o mantivesse, a pasta de gordura preta entre as cerdas, por certo destilaria fungos da mesma cor no interior da valise.
– Canuto...!

Volgram Minerva passara na avenida, ao lado do largo da feira, onde Juarez Canuto se imiscuíra para se crer vivo, convencido de que se tornara um espectro; e como tal, teria que se juntar a homens iguais a ele, espectrais e fingindo-se felizes na sobrevivência de uma rotina miúda. Volgram Minerva não teria que falar com ele, para um não se expor ao outro, visto que a segregação em que viviam era condição necessária para não serem descobertos pela polícia. Mas Juarez Canuto emagrecera, e se fundira feito um vegetal de galhos secos na feira pobre da vila operária.

Juarez Canuto levantou-se, misturando no rosto oval, alongado, surpresa e susto. Olhou para Volgram Minerva, logo a boca se abriu para dar lugar ao ricto de felicidade canhestra, como de alguém que já se curvara à impossibilidade de voltar a rir sem medo de mostrar os dentes, as gengivas sem solavancos.

Os dois abraçaram-se. A barbicha rala e comprida, emendada com o bigode de Juarez Canuto, roçou o rosto de Volgram Minerva. Mesmo com o bodum de chiqueiro do lugar, a morrinha de Juarez Canuto empanou as narinas de Volgram Minerva.
– O que houve com você? – quis saber Volgram Minerva.

A resposta de Juarez Canuto foi um choro miúdo, igual a sua vida, inda que com uma fundura densa de dor. A pergunta fora inoportuna. A feição do amigo, junto com a indumentária estropiada, não dava lugar para indagações.

O encontro dos dois, Volgram Minerva comunicou a Cenira Maia, na noite do dia seguinte.
– Não me controlei. Canuto hoje é uma lembrança mutilada do militante palavroso que conheci há dois anos. Está tão aleijado que tem vergonha de dizer que acredita na revolução.
– Você rompeu com a norma de segurança. Não devia se expor a ele, nem ele se expor a você. Mas numa situação extrema, compreende-se. Ele está morando num quarto alugado; não tem dinheiro para pagar, está desempregado e nós não temos como ajudá-lo. Você está trabalhando. Ele vai morar com você.

Volgram Minerva e Juarez Canuto se despediram na mesa de um boteco deserto, com dois ou três biriteiros de cachaços curvados e pernas finas, em pé, na beira do balcão coberto de moscas. Clandestinos, não se inquiriram sobre o endereço de moradia de cada um. Mas os andrajos de um e a simplicidade composta de outro, davam conta da proximidade de domicílios entre os dois.

O reencontro se deu depois que Cenira instruíra os dois, em encontros separados, sobre como deveriam se portar para evitar que Juarez Canuto não tivesse acesso à base de militantes em que Volgram Minerva tinha assento.

Juarez Canuto, sem assento em base nenhuma, caíra no torpor do pensamento lento. Não raro, sem atinar para a militância acesa de ideias e atos de Volgram Minerva, tinha surtos de citações bíblicas, resgatados da lembrança de quando fora garoto evangélico, sob a influência do pai, pastor de igreja batista.

Cenira Maia recebera de um portador a quem os dois não conheciam, um pacote de roupas enviada pela família de Juarez Canuto. Ele vestiu-se mesmo sem ter lugar para ir. Entre o par de sapatos e as roupas, uma bíblia. Todas as noites ele lia trechos do Velho Testamento para Volgram Minerva.

Não demorou três meses, e Volgram Minerva viu Canuto saindo do culto da igreja batista, com a roupa e os sapatos novos e a bíblia debaixo do braço.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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