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11/10/2014 - 15h00
Infidelidade...?
Marco Albertim
 

Baixar a guarda sobre os impulsos pode ser comum, na medida em que a exposição às tentações é permanente. Expor-se às tentações pode ser ato de vigília, para nutrir-se de conhecimento e prover-se de defesa. Sobretudo para quem, há muito no trato entre homens e mulheres, habituou-se a enxergá-lo como a troca não só de bens materiais, mas de desfrute do afeto carregado de iminente luxúria.

O acúmulo de afeto, além do que se obtém na matriz do domicílio, põe em cheque a crença na moral revolucionária...?

Falta só uma hora para Raimundo encontrar-se com Hercília. Os dois sabem que têm apenas dez minutos de tolerância, caso ele ou ela atrase para chegar ao local. Os dez minutos são tão relevantes, quanto as palavras na troca de impressões sobre como evitar a vigilância da Polícia. As locuções devem ser curtas e prenhes de significado, para abreviar o tempo em que estarão juntos; posto que assim, tão somente assim, evitarão prisões simultâneas.

Raimundo não tem barbicha para esconder o rosto, mas o queixo é tão pontiagudo que pode misturar-se aos milhares de descendentes de europeus, e ninguém o distinguirá como um conspirador sussurrando revoluções. A pele é de mestiço, escurece à sombra das marquises apinhadas de transeuntes; sob a copa de um sombreiro numa praça quase deserta, também. Hercília tem a mesma idade dele, o rosto é redondo e as sobrancelhas, grossas; como as das moças sem trato, populares, sem traços das intelectuais que fumam e têm o cuidado de não deixar que a fumaça cubra os pelos das narinas, de nicotina. Mesmo que na fumaça entre as unhas sem esmalte, haja indícios de trama subversiva.

Trinta e cinco anos cada um. O passado de perseguidos une-os, mais ainda a convicção de que a trama é tão exata quanto uma operação matemática. A revolução é inevitável, sussurram ao entrar no vagão de passageiros do trem da central; sussurram entre gentes que têm no juízo cálculos do aluguel, da compra no supermercado. Raimundo e Hercílio, adivinhando-lhes os urdumes, convencem-se do acerto que têm com o futuro. Para eles, o futuro não comporta encruzilhadas, a história se dá em linha reta.

Descem na Estação de Aquiraz. Quem imaginará que o fim da ditadura está sendo prognosticado à sombra de um cajueiro afastado do casario minguado daquele subúrbio?

Esgotados os assuntos da trama clandestina, resta-lhes ainda tempo. Não há quem os veja sentados no banco de cimento, tão comum a velhos aposentados. Raimundo é casado. Hercília, sem parceiro, tem os sentidos tão atentos à história, que pouco se importaria se um dos seios ficasse à mostra; como no quadro de Delacroix, em que a comunarda mostra duas tetas fartas; numa mão, o fuzil, na outra, o cetim rubro na ponta de uma vara.

– Onde está seu companheiro? – Há provocação na pergunta de Raimundo.

– Não sei, não tenho notícias. Talvez esteja morto.

Não há informe seguro sobre o remoto parelho de Hercília. Ela olha para o matagal atrás do cajueiro onde se abrigam; os olhos ou o uso que faz deles, some feito um espectro fugidio entre galhos e folhagens. Ele partilha da incerteza dela. O instinto de solidariedade une-os. Os rostos se juntam sem se tocarem; é o mesmo que se tocarem... E se tocam. O beijo não é ruidoso, é mudo e denso como a trama desnudada nos sussurros. A densidade faz com que a comoção seja de antropofagia mútua. Depois, desprendem-se. Sem interromper a fixação dos olhos nas frontes, traduzem o que se passa nos juízos transidos de gozo e de dúvidas.

Não querem definir limites. Mas presumem-se tão aptos ao amor inconfesso quanto para a trama só sussurrada.

As dúvidas já são o gozo. Não há razão para pôr fim ao delírio súbito.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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