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Contos
27/11/2014 - 09h00
O segredo de Martim
Maria Cândida Vieira
 

Martim era um rapaz que todos consideravam estranho. Embora fosse simpático e cumprimentasse a todos, não se aproximava demais, como se temesse intimidades. Os outros adolescentes diziam que ele era uma ostra, de tão fechado, e era criticado por não gostar de Educação Física nem fazer parte de nenhum time. Não jogava futebol, vôlei nem basquete e não dizia a ninguém por que fora dispensado.

– Por que não joga futebol nem faz Educação Física, cara? Tem medo de se machucar? – provocavam os outros rapazes.
Ele não respondia e não insistiam.
Outro fator que chamava a atenção era que ele ficava muito tímido com as moças. Enquanto os demais rapazes faziam tudo para chamar a atenção do sexo feminino, ele se retraía quando as garotas chegavam perto dele.
– Será que ele não é chegado? – perguntavam os rapazes da vizinhança onde ele morava.
Tanto na escola quanto na rua onde ele vivia, faziam-se especulações sobre ele. Diziam:
– Talvez ele não seja mesmo chegado. Não é de estranhar que ele não tenha nunca uma namorada? Ele não é feio, mas parece ter medo das moças.
– E ele não gosta de futebol. Só faz ler livros.
Um acontecimento provocou uma mudança na vida sempre calma de Martim. Uma família se mudou para uma casa não muito longe da dele e o casal tinha uma filha, Ana Amélia. A moça era mulata, esguia, de fartos cabelos negros e um sorriso cativante. Quando Martim, sentado na praça, lendo, viu por acaso Ana Amélia passando de bicicleta perto dele, prestou atenção logo nos belos olhos da moça, que eram da cor do mel, humanos, doces e envolventes. A moça lhe sorriu:
– Oi, eu sou Ana Amélia. Acabei de me mudar.
– Oi, sou Martim.
Ana Amélia sentou perto dele e falou que sua família se mudara de cidade e tinha um pouco de medo da nova vida.
– Por que tem medo?
– Nunca sabemos como serão as coisas novas. Será que essa vizinhança é simpática, será que vou gostar dos colegas da escola?
– Bem, eu acho que, se alguém não for capaz de gostar de você, é um idiota.
Desta forma, Martim foi a primeira pessoa com quem Ana Amélia fez amizade. Antônio, um dos adolescentes, falou:
– Vamos ver se estávamos certos em nossas suspeitas.
Ana Amélia levou Martim para conhecer sua família: os pais e um irmão mais velho e Martim levou Ana Amélia para sua casa, apresentando-a aos pais e aos dois irmãos mais novos. A menina achou os pais e os irmãos de Martim simpáticos, mas notou que a mãe de seu novo amigo aparentava estar receosa. Houve um momento que pediu para ir ao banheiro e, ao voltar, passou pela cozinha, ouvindo os pais dele conversarem em voz baixa:
– Essa menina é uma gracinha, tão simpática.
– Forma um belo casal com nosso filho.
– Mas será que ela o aceitaria se soubesse?
A jovem não entendeu. Com o tempo, sua amizade foi se aprofundando e ela notava que Martim queria dizer algo, sem, no entanto, ter coragem.
– Martim, o que é?
– Ana Amélia, se eu dissesse qualquer coisa a meu respeito, você jura que continuaria a falar comigo?
– Por que diz isso?
– Sabe, eu nunca tive muitos amigos, não pude nunca jogar futebol, não sei nem andar de bicicleta.
– Muitos não sabem. Não é vergonha nenhuma.
– Mas não é só isso. Há muitas coisas que eu não pude compartilhar com ninguém fora da minha família até agora. Meus pais e meus irmãos são legais, mas eu...
– Quer me contar?
Ele hesitou e disse:
– Desculpe, tenho medo de qual seria a sua reação. Talvez, bem, não sei. Não quero perder você, você é tão doce. Por causa do meu jeito, os outros rapazes e as moças falam de mim pelas costas.
Ana Amélia já tinha notado, mas não quisera falar sobre aquilo com ele.
– A vida é sua, Martim. E você não vai me perder.
As coisas permaneceram assim por um longo tempo e Ana Amélia gostava mais da companhia de Martim que, às vezes, colocava a mão sobre a sua e depois a retirava, tímido.
– Martim, está com medo de mim?
– Não, não é medo de você. É que eu...
– Calma. – colocou a mão sobre seu ombro.
Impulsivamente, a mão branca de Martim pegou a mão morena de Ana Amélia, beijando-a. Ele olhou para ela e falou tristemente:
– Eu queria poder lhe contar...
– Conte-me.
– Mas não posso.
– Não pode contar o quê? – ela se angustiou.
– Se eu contar, você vai ficar com horror a mim ou continuar minha amiga só por piedade. Desculpe, eu não posso ficar mais aqui.
Levantou-se bruscamente do banco e foi andando em direção à sua casa, deixando Ana Amélia assustada.
Por dias, eles não se falaram e Ana Amélia ficou triste. Num dia em que foi ao armazém, encontrou Antônio, um dos rapazes que viviam no bairro.
– Oi, Ana Amélia.
– Oi, Antônio.
– Cadê o seu amiguinho? Brigaram?
– Isso é assunto meu, Antônio.
– Todo mundo estranhou ver o Martim com você.
– E que tem isso?
– Menina, o Martim é esquisito. Faz uns seis anos que ele se mudou para cá com a família e ele nunca jogou futebol com a gente, não chega perto das meninas. Os pais o protegem demais. Isso não é esquisito? Eu estudo na mesma escola que ele, sabe? O cara nem pratica Educação Física.
– Ah, você vai se incomodar com isso?
– E o fato dele não dar em cima das meninas? Isso não soa estranho, não?
Indignada, Ana Amélia não respondeu às insinuações maldosas de Antônio. Queria procurar Martim, dizer que gostava dele e que, fosse o que fosse, não importava. Porém, e se o que Antônio insinuara fosse verdade? Voltando para casa, Ana Amélia passou em frente à casa de Martim e viu que ele a olhava pela janela. Tentando não chorar, foi embora. Qual seria o segredo que ele não queria contar?
Numa tarde, o irmão de Ana Amélia atendeu à campainha. Era Martim.
A menina estava estudando em seu quarto e ficou surpresa ao vê-lo.
– Martim?
– Posso falar com você?
– Claro.
– Bem, eu queria pedir desculpas por ter agido como agi. Pode me perdoar?
– Seu bobo, não tenho que lhe perdoar de nada. – abraçou-o.
O abraço dela o fez ficar tenso e ela o soltou. Conversaram e, em pouco tempo, a amizade deles voltou a ser a mesma de antes, apesar da desconfiança de Ana Amélia sobre qual seria o segredo dele, mas ela não queria perder uma amizade tão preciosa e se calou. Martim passou a acompanhá-la quando ela ia às aulas de dança, visto que ela voltava tarde e a mãe dela se preocupava com a filha voltando sozinha de ônibus.
– Por que não dança, Martim?
– Sou um horror.
– Sabe o que gosto em você, seu bobo?
– Não.
– É que você não tenta me impressionar, ao contrário dos outros garotos.
Quando ela ao ginásio, Martim ia à biblioteca perto e lá ficava até a hora dela sair. Então, voltavam juntos. Uma tarde, ela pediu que ele assistisse.
– Sei não, Ana Amélia. Que eu tenho a ver com isso?
– É divertido. Vem.
A professora deixou e Martim ficou num canto onde podia assistir sem atrapalhar. Num pequeno intervalo, ela olhou para Martim e sorriu. Foi então que ocorreu algo estranho e assustador. Ele caiu no chão e começou a se debater. A professora e as outras alunas gritaram:
– Meu Deus! O que está acontecendo?
Num intervalo de tempo pequeno, mas que pareceu muito longo, Martim se debateu, babou e seu rosto se contorceu, lembrando uma máscara de monstro. Ana Amélia, as outras alunas e a professora observaram, horrorizadas. Ele parou e olhou para todas, confuso e exausto.
– Calma – disse Ana Amélia – não tente levantar.
Ajudaram-no a sentar no chão, a professora trouxe um copo d'água e ele limpou a saliva do seu rosto, olhando atordoado para Ana Amélia, que falou:
– Martim, está tudo bem?
– Vou ficar bem. Há tempos, não acontecia. Hoje, eu esqueci de tomar o...
Segurando o rosto dele, ela indagou:
– Você sofre de epilepsia, não é?
– É, era isso que eu não estava com coragem de contar.
– Meu Deus, você achou que eu ia ficar com horror de você por causa disso?
– Muita gente já me viu tendo e ficou se afastando de mim, como se eu fosse um hanseniano, Ana Amélia.
– Pode levantar agora? – perguntou a professora.
– Sim.
A professora e Ana Amélia o ajudaram a levantar.
– Como está?
– Cansado. Quero dormir.
– Acho melhor chamar um táxi para deixá-lo em casa. – resolveu a mulher.
Chamaram o táxi e Ana Amélia e Martim voltaram para a rua em que moravam. Ao se despedir, ela disse:
– Depois, quero falar com você.
– Você não tem nojo de mim?
– Nunca. – abraçou-o.
Na manhã seguinte, estavam na praça onde haviam se visto a primeira vez. Martim explicou:
– Manifestou-se a primeira vez quando eu era muito pequeno e, por causa disso, meus pais nunca me deixaram praticar esportes, andar de bicicleta ou jogar bola. A única coisa que me deixaram fazer foi natação, porque acham perigoso não saber nadar. Nunca fiz Educação Física porque apresentei atestado, mas em segredo. Meus pais disseram que eu nunca deveria dizer a ninguém e eu tenho medo de ter uma crise no meio da multidão. As pessoas acabariam com nojo de chegar perto de mim, eu acho. E que menina iria querer um epiléptico?
– Você deveria ter me contado.
– Eu fiquei com mais medo de lhe contar por uma razão, Ana Amélia.
– Qual? – o coração dela pulou no peito.
– Até agora, nenhuma menina mexeu tanto comigo que me fizesse ter vontade de contar.
Ficaram de frente um para o outro e ele lhe segurou as mãos.
– Você não deve nunca ter vergonha de você, Martim.
Com ternura, Martim segurou seu rosto com ambas as mãos, aproximando seus lábios do dela. E um beijo silencioso ocorreu, unindo-os a partir daquele momento.

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