No último artigo (Tabu mercantilista), falamos da mística dos superávits comerciais e a da conseqüente acumulação de reservas internacionais. Vimos que, ao contrário do que se pensa, quando obtemos um saldo comercial estamos, na verdade, exportando poupança para outros cantos do planeta, no lugar de investirmos aqui os recursos. Depois de ler o indigitado texto, alguns amigos levantaram a seguinte questão: não precisamos dos superávits (comercial e de transações correntes) para pagar a dívida externa? Antes de responder a esta pergunta é preciso esclarecer alguns outros pontos. Em primeiro lugar, as divisas provenientes do saldo no balanço de pagamentos não pertencem ao governo ou ao Banco Central. Elas pertencem, na sua quase totalidade, às empresas, aos bancos e às pessoas físicas, por conta das suas transações com o exterior. O governo, ao adquirir estas divisas, nada mais faz do que trocar moeda estrangeira por moeda local. Para fazer isso, ele dispõe de três alternativas: (a) fabricar dinheiro, (b) utilizar recursos próprios pré-existentes ou (c) emitir novos títulos públicos. Felizmente, já faz algum tempo que o país deixou de ser refém das emissões irresponsáveis de moeda, que tantos males causaram à sociedade durante a última metade do século passado, quando a inflação cobrou um tributo muito alto, principalmente dos mais pobres, para que os burocratas e os políticos pudessem pôr em prática os seus mais variados projetos populistas e desenvolvimentistas. Quanto à utilização de recursos pré-existentes, esta pressupõe uma poupança prévia por parte do governo, o que só seria possível caso este obtivesse superávits fiscais nominais nas suas contas (arrecadação-dispêndios), o que, desgraçadamente, ainda está muito longe de ocorrer. Por enquanto, os nossos administradores continuam produzindo constantes déficits fiscais (aproximadamente 3% do PIB por ano). Sobra, então, somente a alternativa (c): emissão de novos títulos. E assim será até o dia que o Estado começar a gastar menos do que arrecada. O pagamento da dívida pública, portanto, seja ela interna ou externa, independe da balança comercial ou das transações correntes com o exterior. Tal qual cada um de nós, para pagar as suas dívidas o governo precisa arrecadar mais do que gasta. Simples assim. Estamos falando aqui de saldo fiscal nominal e não apenas do famigerado superávit primário, que vem a ser somente um eufemismo, criado para nos fazer acreditar que os políticos estão fazendo a parte deles e para destacar os encargos (juros) da dívida das demais despesas do governo. Em tese, se a nossa moeda fosse de fácil conversibilidade, como o dólar, o Euro ou qualquer outra moeda forte, não haveria nenhuma necessidade de produzirmos superávits em nossas transações correntes com o exterior. No entanto, como o Real (ainda) não é uma moeda aceita no mercado financeiro internacional, é desejável que o país tenha alguma "reserva técnica" em divisas fortes, suficiente para defender-se de ataques especulativos e para precaver-se de situações de baixa liquidez mundial. Essa "reserva técnica", todavia, não precisaria ser maior do que o estritamente necessário para o cumprimento dos compromissos de curto prazo. Para este ano, por exemplo, estão previstos desembolsos da ordem de US$ 10 bilhões para pagamento de compromissos externos, dos quais o governo já adquiriu cerca de US$ 8 bi, segundo dados divulgados pela imprensa, semana passada. Assim, sobram somente 2 bilhões de dólares para que o país "feche" a conta dos seus compromissos com o exterior. Isto, se considerarmos que não haverá nenhum novo investimento direto estrangeiro no país durante todo o ano, o que é muito difícil de acontecer, principalmente em tempos de elevada liquidez mundial. O raciocínio corrente, que correlaciona os pagamentos da dívida pública externa com os superávits na balança comercial, é, portanto, falacioso. A dívida pública, devemos frisar, seja ela em moeda estrangeira ou em reais, só será reduzida quando o governo começar a gastar menos do que arrecada. E esse gastar menos precisa incluir, também, as despesas com juros e demais encargos financeiros. O grande engodo, retirado da cartola por profissionais do diversionismo, chamado "superávit primário" (uma espécie de jabuticaba econômica, que só existe no Brasil, como a falecida "correção monetária", de triste lembrança), nada mais é do que uma figura de retórica para encobrir os constantes déficits fiscais do governo, que não consegue (ou não quer) reduzir os seus próprios gastos correntes. Não existe, volto a dizer, qualquer razão para que o país acumule superávits comerciais além do estritamente necessário, principalmente porque não estamos em posição de exportar poupança. Ao contrário, ela é muito necessária para os investimentos aqui dentro. Precisamos acabar com esse tabu mercantilista que prega a acumulação de divisas como condição sine qua non para o crescimento. O importante não é o saldo da balança comercial, mas o seu volume total (importações + exportações). É esse volume, maior ou menor, que contribuirá, positiva ou negativamente, para a geração de riquezas e, conseqüentemente, para o desenvolvimento. Nota do Editor: João Luiz Mauad é empresário e formado em administração de empresas pela FGV/RJ.
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