· Contribuições do passado
Angela M. Carpinetti de Souza
articulista@ubaweb.com
Hoje se ouve muito falar na volta do médico de família, de enfermeiras sendo treinadas para realizar partos, de medicina natural etc. A modernidade, a tecnologia buscando as soluções simples que haviam no passado.
O médico de família e as antigas parteiras tinham um papel importantíssimo nas famílias. O médico, geralmente clínico geral, acompanhava a criança desde o nascimento até a idade adulta. Servia de médico, confidente, psicólogo, compadre, amigo etc. A relação médico - paciente era muito estreita. Hoje como vivemos em função do tempo, do dinheiro, essa relação deixou de existir.
A questão da confiança no médico era outro ponto muito importante. Bem diferente dos nossos dias, em que o médico trata da doença como se ela existisse independente da pessoa, de todo um contexto do ser humano.
Em nossa cidade, algumas pessoas deixaram suas marcas, como é o caso do doutor Fraga. Os mais antigos devem dele se lembrar: homem alto, magro, impecável no vestir, que por muito tempo atendeu a população de Ubatuba. Recordo-me de que o Dr. Afonso Fraga morava no final da Rua Pires Nobre. Tinha um pequeno e simples consultório em sua residência, mas, na maioria das vezes, atendia nas casas das famílias ubatubenses. Ainda pequena, recordo-me de que era Deus no céu e o Dr. Fraga em Ubatuba. Todos tinham uma confiança enorme nele. Além de ser muito bom médico, era muito generoso. Não se importava com as condições financeiras de seus pacientes. Atendia a todos da mesma maneira e com a mesma generosidade. Era do tipo que unia o amor à profissão e a dedicação ao próximo. Pessoas assim, hoje em dia, são raras de se encontrar.
É com estranheza que vejo nossos políticos, até hoje, não terem homenageado esse homem. Nossas ruas e praças têm nomes de pessoas que nada significaram para Ubatuba. Assim como o Dr. Fraga, outro médico que deveria pelo menos ter o nome lembrado é o Dr. Arthur De Luca Netto. Arrisco um palpite: ou os nossos políticos, os nascidos aqui, têm memória curta, ou nossa cidade está cheia de políticos sem raízes.
Ela não era bem uma enfermeira, mas uma parteira também conhecida de todos em nossa cidade. Para ela não tinha dia de sol ou chuva, dia ou noite, frio ou calor. Era só chamar e lá ia ela a bairros distantes da cidade, com sua sacolinha na mão, na garupa de uma bicicleta ou a pé mesmo. Às vezes retornava no mesmo dia, outras vezes demorava mais tempo. Dependia das condições de suas clientes. Sua casa na cidade era parada obrigatória para aqueles que a conheciam. Havia sempre um café quente, um prato de comida para oferecer, um lugar para descansar e um papo amigo para levar.
Pequena e franzina, de saúde não muito boa, mas com um coração tamanho do mundo. Casara-se cedo, aos 13 ou 14 anos. Tivera oito filhos dos quais cinco morreram. Sua vida sempre foi muito sofrida. Nascida na roça, sem estudo nenhum, mas com uma sabedoria enorme, aprendera talvez por força das circunstancias a colocar no mundo muitos ubatubenses. Sua passagem na Terra foi curta. Morreu aos 54 anos, mas sua missão foi cumprida com muito amor, dedicação e generosidade. Atributos que hoje quase não se encontra. Por acaso essa senhora era minha avó: dona Zelinda das Dores Pereira.
A exemplo da medicina, outras áreas, como a da educação, deveriam buscar soluções que deram certo no passado, uma vez que nem tudo o que é passado é ultrapassado. 
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· O Ser, tendo e o Ter, sendo
Ricardo Yazigi
ryazigi@iconet.com.br
Dizem que Deus perguntou a Adão se ele amava Eva. Adão respondeu: "E eu lá tenho outra saída?". Desde que o mundo é mundo, o ser dito humano se questiona. O desejo de conhecer o desconhecido sempre excitou nossa raça. Adão não conhecia outra mulher, mas provavelmente se perguntou como seria sua vida se existisse outra mulher no mundo. Como seria a outra? Igual a Eva provavelmente não, pois como observador que era, já havia notado que mesmo os animais de mesma espécie eram diferentes. Tudo na natureza não se repetia, as flores, as árvores, as nuvens, os peixes. Mas e se no lugar de outra mulher encontrasse um homem? Será que ele lhe roubaria sua Eva? Mas a palavra roubar ainda não existia. E se o outro, ao invés de roubar (já que ainda não existia ladrão) resolvesse convidar Eva para outro lado, longe dele, e ela aceitasse?
Ihhh! O mundo mal começara e já vemos o sentimento da traição nascendo. A preocupação com a posse das coisas é inerente ao ser humano. Adão não tinha outra mulher, mas já dominava seu território, sua mulher, tudo à sua volta era presumivelmente seu. Ele se achava o rei do mundo, e Eva era sua rainha, num mundo onde essas duas realezas tinha um domínio completo sobre todas as coisas. Entretanto existia apenas uma coisa, uma só coisa, que eles não conseguiam dominar: o desejo. O desejo era incontrolável e os fazia desobedecer a Deus. Era uma luta interna que os fazia questionar a cada momento se deveriam ceder às suas vontades e abandonar o que Deus dizia ser o âmago de seus seres e entregarem-se ao puro e simples desejo de se possuírem. Acabou no que todos sabemos. O ser deu lugar ao ter. E foi graças a esse episódio que os dois perderam o trono.
A partir daí ficou tudo como antes no quartel de Abrantes. O ser humano enfrentou mais de quinze mil guerras em cinco mil anos à troca de conquistar algo. Ter, possuir, obter, dominar, conquistar, atrair, granjear tornaram-se palavras de ordem. Alguns poucos filósofos e pensadores tentaram incutir na mente humana que se deveria trocar o ter pelo ser. O ser humano deveria buscar a resposta a tudo dentro de si mesmo, os bens materiais de nada valeriam. Alguns sacrificaram suas próprias vidas afim de garantir que seu ser seria respeitado abrindo mão de posses em troca de defender seus ideais de vida.
O nosso século mostrou com clareza a briga entre o ser e o ter. Novos filósofos e pensadores surgiram defendendo o ser. Mas o poder econômico começou a enterrar a filosofia dos que ainda acreditavam numa mudança.
O pensador hindu Jiddu Krishnamurti pregou durante todos os seu 90 anos de vida que deveríamos esvaziar nossas mentes e viver cada minuto da vida como se fosse o primeiro, não se apegando a nada. Chegou a convencer cientistas respeitáveis com suas idéias, entretanto após sua morte, foi esquecido. Numa outra corrente, outro pensador hindu, Bagwan S. Rajneesh pregou o amor livre e a criação de uma nova sociedade alternativa com desapego aos bens materiais, onde todos eram iguais. Terminou desacreditado depois de expor sua coleção de Rolls Royce, que dizia possuir apenas por ser esse o único veículo cujos bancos lhe proporcionavam uma adequada postura à sua coluna. Acabou morrendo vítima do vírus da AIDS, contraído em uma de suas orgias.
Muitos outros tentaram convencer a humanidade da importância do desapego material, mas chegamos ao final do milênio com a convicção de que o Ter venceu. Apesar de tudo, ainda resta uma esperança, esse conflito humano acaba nunca terminando, e percebemos que quando o ser humano tem tudo o que deseja acaba por se interiorizar, buscando algo dentro de si e é essa busca que nos faz crer que algo ainda pode mudar. Talvez um dia, o ser humano ainda encontre seu verdadeiro caminho. O do Ser ou do Ter, ou ainda quem sabe, o do Ser, tendo ou que seja o do Ter, sendo. 
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