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Ano 1 - Nº 13 - Ubatuba, 18 de Outubro de 1998
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· O lagarto praiano
    Herbert Marques
    hmarques@iconet.com.br

Lagarto

Natural de uma família de lagartos vindos lá dos roçados do sertão, chegou ainda criança nos costados daquele mar sem fim, certamente em busca de melhor pasto que aqueles mandiocais onde se disputava comida com as preás e a sobrevivência com as cobras e humanos. Sábia mãe, como toda mãe é sábia, juntou sua prole composta de mais dois lagartinhos, obviamente sem marido que na espécie somente serve para fornicar, e puxou o carro para o rumo certo do vento sul que a tradição já lhe havia ensinado ser o caminho do mar. Lá a comida se dizia abundante pela presença do humano, inconscientemente veículo de alimentos que deixava sempre nas pedras onde com mecanismos esdrúxulos praticava uma tal de pesca esportiva, via de regra sem êxito, voltando para casa sem conseguir ludibriar nenhum peixe à prática do suicídio mordendo um pedaço de arame com uma ponta afiada, espetada em um falecido camarão, sardinha ou outro infeliz qualquer. Isso sem contar os pedaços de pão que costumava deixar por lá, coisa ruim mas engolível em caso de necessidade.
Infância difícil aquela do nosso herói lagarto, obrigado a se adaptar a uma vida barulhenta, vendo o dia todo o mar bater incansável sobre as pedras, a correria de um sem número de baratas imbecis que chegavam até a beira d'água e depois saiam correndo ao se aproximar uma onda maior que fatalmente as levariam de roldão para o bucho do primeiro peixe que estivesse ali por baixo e, principalmente, a espera muita das vezes inútil, da chegada do salvador da pátria, o tal do humano, sua enorme vara e sua incorrigível persistência em querer achar que todo mundo é idiota para entrar na sua.
Sábia mãe, também inexperiente naquele novo mundo, mas suficientemente equipada pelos conhecimentos advindos de seus ancestrais, tratou de rapidamente se adaptar as adversidades que a vida sempre lhe estava preparando, entendendo logo de início que não poderia ficar na dependência de outro ser, bastante diferente de sua espécie, embora já há muito conhecido lá das roças de mandioca onde também contribuía para o alimento de sua família, via de regra pelo preço alto do sacrifício de um deles, levado para a panela depois de uma morte trágica, causada pela descarga de um punhado de chumbo, vindo de um cano e detonado por uma espoleta. E qual seria essa adaptação? As baratas da costeira por si só deram a solução para a mãe de nosso herói e toda a sua família que por sua vez ficaram com a obrigação de transmitirem esses ensinamentos para seus sucessores, que também movidos pelo mesmo instinto começaram a chegar na região.
Não fosse a mão do destino, e essa história terminava aqui, ou seja, o registro da adaptação do lagarto, habitante historicamente originário das regiões secas, rochosas e áridas, às praias e costeiras de nosso litoral.
Mas o lagarto praiano tão somente não se adaptou a morar junto ao mar. Adquiriu também os trejeitos dos demais moradores da região e principalmente a forma de viver, tranqüilo, despreocupado com a vida, bastante seguro da comida farta e transa abundante. Passou a relaxar com a sua segurança, arma natural que sempre garantiu sua sobrevivência nos outros locais, descobrindo mesmo que seus inimigos naturais, a cobra e o humano, não se importavam com ele naquele novo habitat, a não ser este, quando muito enfurecido ou em outro estado emocional qualquer que nunca foi possível descobrir o motivo, passou a adquirir o estranho hábito de engolir, sim é verdade, engolir cobras e lagartos.
Dizem os biólogos que esse procedimento tem como finalidade o equilíbrio entre as espécies.Fim do texto.
· Os tratores e a seleção
    Paulo S. S. Vilela
    vilela@nox.net

 

Vermelho e amarelo, as cores do Benfica
e do meu time de domingo.
Num dos três campos, geralmente o do meio,
dentro de um outro maior que era o dos bois,
na época do rock,
sozinho torcia por aquele time em crise.
Raspadinha com groselha num copo duplo,
o prêmio de consolação da alma,
que triste assistia a derrota habitual.

O Brasil inteiro vivia a euforia da Copa de 58
e o nascimento do Rei Pelé,
que eu vi pelas luzinhas que corriam em lugar da bola
num grande painel na Praça da Sé.
Abobalhados pareciam todos diante dos alto-falantes,
que anunciavam ruidantes o terceiro gol do Brasil.
Ninguém falou outra coisa por meses, por anos a fio.

A mim mais interessava o rubro-amarelo
das matinais de domingo,
que eu via ao vivo no lugar da missa,
ao lado de poucos, sem o Vavá e o Gilmar.
Este era o maior time do mundo!
O meu time, o que havia elegido,
não o do seleção do Brasil,
porque eu não era o Brasil,
só uma criança de rua que não conhecia nada...
Um pedaço do meu bairro era o meu país,
não havia outro.

No meu time, o goleiro era o Coteco,
não tinha três dedos da mão direita,
mas voava como imagino voam os anjos.
Como alguém que não conheceu o Paschoal Moreira
poderia entender tanta paixão por um timinho de várzea
que se reunia na hora do jogo?
Como compreender este estado de quase adoração?
E fico imaginando quem entre tantos milhares foi um Kosilec?
Qual foi capaz depois de cinco chapéus seguidos marcar de cabeça?
Sem usar o braço, cotovelo ou outro truque qualquer.
Nem Pelé, nem ninguém chegou perto de fazer tal proeza no futebol.
E esta cena, sem câmaras, sem vídeos, ficou gravada na memória
de uns poucos, toda a platéia de um domingo de chuva,
de um fevereiro bissexto.
Não sei se mais alguém pode se lembrar disso.

O meu time acabou, mas não por ser perdedor.
Porque as máquinas chegaram...
E foram empurrando a terra, engolindo os campos.
Eram muitas, nem sei quantas, mas tantas,
que levaram a minha infância de uma só vez.
Foi tudo embora em poucas horas:
as balas de mamonas dos nossos revólveres,
as grandes árvores onde nos escondíamos.

Ainda não compreendia o que era especulação imobiliária
e menos ainda o que se passava com aquele lugar,
que ainda não era do meu passado.
Nunca mais liguei prá essas coisas de futebol.
Em vez de campos de várzea,
um apinhado de edifícios rosados se impôs ali,
alinhados, simétricos, desconformes com a natureza.
À época ninguém perguntou às árvores
e crianças o que elas sentiram.
Depois, também não! Mais depois ainda,
descobri que não se faz tais perguntas,
nunca!Fim do texto.
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