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Ano 2 - Nº 15 - Ubatuba, 20 de Dezembro de 1998
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· O Corpo Seco do Itaguá
    Herbert Marques
    hmarques@iconet.com.br

Pelos idos de 1940 morava pelos lados do Itaguá, mais precisamente na Fazenda Lagoa, Tião Ricardo, filho de Das Dores, pai desconhecido. Já taludo para a lida, Tião saia todo dia bem pelo sol nascer e caminhava trilha da fazenda até o caminho principal que levava para a cidade, onde sempre havia um biscate para fazer, maioria das vezes entregar isso ou aquilo ou descarregar a Santense em dias de quinta-feira.

Não era lá vida que gostaria de ter mas paciência, era a que Deus lhe havia dado. O negócio era remediar com o que aparecia para fazer.

Num dia de verão, dia de descarrego de barcaça pros lados do Caruçú-Mirim, Tião saiu de casa mais cedo, disposto a ganhar uns trocados a mais que o necessário para mãe Das Dores, e com ele procurar uma putona nova que havia chegado na cidade vinda do cais de Santos, já com uma quilometragem bem rodada, mas ainda agüentando meia sola das boas. Não deu outra, a Santanse chegou chapada de mercadoria para abastecer o comércio nas vésperas do fim do ano e o descarregamento se estendeu pela manhã e tarde afora, somente parando já pelas cinco.

Banho tomado na bica, broa de milho do Romoaldo no bucho, dinheiro suficiente para o amor programado, pensamento fixo na parte que tinha de ser reservada para a mãe pagar a parteira pelo trabalho realizado há três meses em sua irmã menor, lá se foi nosso herói pelos lados do lazareto, caminho do João Braz.

Não foi difícil encontrar a Deolinda, mesmo porque já tinha assuntado a hora em que punha a cara redonda e com algumas rugas, na janela, faltando tão somente o dinheiro, agora separado em um dos bolsos.

Poucos dentes, cabelo comprido com cheiro de Coty, pernas roliças, fogo nas entranhas, foi difícil controlar naquela grama já noturna, todo aquele reboliço armado pelos dois completamente nus de corpo e de alma, embora prenúncio de chuva rondasse pelos cantos da noite escura.
Se puta Deolinda aparentava insaciável, Tião não deixava por menos, atendendo a parceira até extenuarem ambos, oportunidade em que deram os trâmites por findos, chegando nos finalmente. A dama apresentou a conta, muito fora daquilo que havia pensado ser. Paga, não paga. Se pagasse não tinha dinheiro para levar pra casa, se não pagasse corria o risco de ter a vizinhança alertada do calote, promessa já em vias de ser cumprida pela desconfiada cortesã tropical dos mares longínquos do puteiro do cais do porto. Resolveu pagar e ir embora, já se guiando pelo rumo e pelo clarão dos relâmpagos, na escuridão de chuva pra chegar.

Cansado, roupa toda molhada pelos pingos de chuveiro que vinha do céu, Tião seguia para sua casa sob uma série de luz e de bumbar de trovejo. No pensamento o remorso em não poder acudir a mãe mais uma vez desprotegida e em débito para com a afilhada e salvadora de anjo, intercalava com o desejo satisfeito pela luxúria do amor sem freio.

Ao ter atravessado a estreita ponte da Barra da Lagoa, na encruzilhada dos caminhos para o Itaguá e Fazenda Lagoa, o céu alumiou de forma tão brilhante como nunca se tinha visto igual. O estralo ainda mais assustador parecia ter casado com a luz, ou pelo menos fazer parte integrante dela para ambos, logo a seguir, após expelir um forte odor de queimado, deitassem o ar e a noite em um silêncio e escuro de morte.

Dia seguinte, sem chuva e sem sol, um tronco de arvore queimado e em forma de uma desesperada pessoa de galhos ou braços estorricados e abertos apareceu sem mais nem menos naquela encruzilhada, ficando ali até bem pouco tempo atrás, quando foi arrancado para construírem um prédio.

Tião Ricardo desapareceu. Risonilda, a parteira, ficou sem receber pela vida que deu ao Ziquinho. Puta Deolinda voltou na primeira Santense, dizem, cheia de arrependimento.Fim do texto.


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