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Ano 2 - Nº 19 - Ubatuba, 18 de Abril de 1999
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· Os encantados encantadores
    Ricardo Yazigi
    ryazigi@iconet.com.br

- Atention! Atention! - bradava o velho árabe empurrando o seu jumento carregado de mercadorias, na estreita rua da medina. A largura das ruas da medina de Fez eram suficientes apenas, para dois animais carregados passarem um pelo outro. Era comum os passantes serem atropelados pelos jumentos mesmo com o aviso gritado de seu condutor. Como todas as medinas do mundo árabe, esta ficava no centro da cidade, das ruas principais sangravam ruazinhas e becos cujo charme, às vezes, era sufocado pelo clima misterioso gerado pela singularidade de seus habitantes. Apesar da medina possuir mais de quatrocentas mesquitas, era na principal mesquita congregacional onde se poderia ter a melhor noção do número de seguidores de Maomé. Coincidentemente, nos tempos de crise, aumentava de forma considerável a população mulçumana que procurava pelas mesquitas. Um dos pontos mais freqüentados da medina, era, sem dúvida, a praça central do mercado, o suq, principal posto de trocas e de encontros. Próximo ao suq ficavam as lojas que vendiam jóias, artesanato, tapetes, roupas, especiarias, ferragens, doces e mais uma infinidade de artigos. Mas eram os encantadores de serpentes que despertavam maior curiosidade entre os visitantes.

- "Seied", leve essas três adagas pelo preço de apenas duas, é uma grande pechincha.

- Não, obrigado. Estou a me maravilhar com esses encantadores de serpentes.

- Esses aí são da tribo dos Aissauas. Eles são grandes magos, os únicos capazes de dominar uma naja negra.

Naja

- Ora, não há nada de mágica nisso, esses ofídios são dominados pela música, é a melodia que enfeitiça essas cobras.

- Ah! Ah! Desculpe, mas "seied" também acredita em tapetes voadores?

- Não sejas tolo jovem, estamos falando em música não em contos de príncipes.

- Isso tudo não é só um truque, "seied" - disse o vendedor - esses encantadores de serpentes são do deserto pedregoso, onde quase ninguém consegue viver. Eles são os únicos a conseguir capturar e dominar as najas. Sabe, "seied", essas cobras são das mais venenosas do mundo.

Fiquei imaginando como um homem poderia arriscar sua vida, o tempo todo, para receber  só  uns  trocados.  Alguns  dizem,  às
vezes, que a vida não vale nada, pois é nessas horas que eu achava que a vida valia muito. Aqueles mágicos, ou o que quer que eles fossem, vestidos de branco, sabiam disso talvez até mais do que eu próprio.

- Mas me diga uma coisa, como esses homens conseguem dominar uma cobra dessas? - perguntei curioso.

- Os aissauas dominam as cobras há séculos. Eles possuem um poder hipnótico que foi passando de pai para filho. Jamais uma naja morde um aissaua. Muitos morrem picados por essas cobras, mas nunca um aissaua. Além disso eles conseguem pisar sobre brasa quente, tomar água fervente e furar o corpo sem demonstrar nenhuma dor - responde o vendedor.

- Por que se vestem de branco? - continuei perguntando.

- Eles detestam roupas pretas. Não sei bem porque - respondeu humildemente o vendedor.

Nesse momento, começei a pensar em todas as pessoas que só gostam de vestimentas brancas. Geralmente são pessoas ligadas a uma forte espiritualidade, como é o caso de alguns líderes religiosos. Mas também há as noivas que querem transmitir um sentimento de pureza. O branco é sempre associado com alguma coisa boa, como a paz. Já o preto é a ausência de cores, é o desconhecido, a falta de luz entretanto, é o que se opõe ao branco, e o mundo é feito de opostos. Os opostos são necessários para harmonizar o mundo.

- E então "seied", três adagas pelo preço de duas. Ajude aqui um pobre chefe de três famílias - disse o vendedor, apelando para a comoção.

- Três famílias? Você deve ser mesmo maluco. Vá lá, seu maluco, dê-me logo essas três adagas pelo preço de duas e tome seu caminho.

- Aqui está. "Chucran, seied". Alah o proteja!

Fiquei pensando o que eu faria com as adagas compradas, quando de repente outro vendedor me abordou.

- "Seied", tenho uma pechincha, quatro adagas pelo preço de duas. Ajude um pobre chefe de quatro famílias.
O quê?, pensei, fui tapeado pelo outro, também como iria advinhar que esses vendedores ofertam as adagas proporcionalmente ao número de famílias que possuem? Fiquei pensando que por aqui todos têm poderes. Uns utilizam seus poderes mentais encantando serpentes, outros hipnotizam a nós, fazendo com que compremos até a areia do deserto.

- "Seied", olhe essa verdadeira pechincha.

- Mais um?!!! Por acaso, garoto, quantas famílias você tem?
- Como? Sou solteiro "seied".

- Solteiro? Não tens nenhuma família? Pobre rapaz, vai morrer de fome assim. Olhe garoto tome aqui essa moeda e vê se trata de conseguir pelo menos umas três mulheres.

Nota do Autor: do árabe:
· seied - senhor · chucran - obrigado · suq - mercadoFim do texto.
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