A maldição das filas de espera, inevitável mesmo naquele horário, os atingiu. Mas a fila avançava rapidamente. Quase que não houve tempo de escolher o filme. – Duas entradas, por favor. A mocinha do caixa fitou-o com o desinteresse de quem tem muito mais com o que se preocupar. – Para qual sala? – O filme da sala quatro. – Saudades de outros tempos, das salas grandes, atualmente retalhadas em ambientes reduzidos, sem nenhuma personalidade. As salas do ’xópin’ já nasceram pequenas, não permitindo nenhuma divagação saudosista. – Eu pago a minha. – Nada disso é minha convidada. – Que bobagem machista é essa? – Ora, eu convidei. O pessoal da longa fila única começava a dar sinais de impaciência. Tudo tinha de ser rápido. Sinal dos tempos. A escolha do filme, o pagamento, tudo, sob pena de uma tempestade de protestos se abater sobre os indecisos. Pagou e, em troca, recebeu os dois ingressos em papel reluzente, saídos da impressora. – A sessão começou faz cinco minutos, avisou um empregado cuja função consistia em rasgar ingressos. Sigam o corredor, é a quarta sala à esquerda. Era o mínimo que se poderia esperar de uma sala quatro. Detiveram-se por uns instantes à frente do balcão da doceira. Comprou balas de goma. Desprezaram a máquina na qual saltitavam pipocas. Não valia a pena entrar numa outra fila. Passaram rapidamente pelo corredor que, no lado direito, ostentava cartazes chamativos – dos próximos lançamentos – e, no lado esquerdo, a identificação luminosa das salas. Era só abrir a porta, afastar uma pesada cortina de veludo e entrar. O escuro os engoliu. Estavam logo abaixo da tela, de frente para a sala. Mais alguns segundos para que os olhos se acostumassem com a escuridão. O filme não havia começado ainda. Na tela, cenas das próximas fitas a serem exibidas. Os alto-falantes despejaram decibéis hostis à guisa de boas-vindas. Pelo jeito, o sistema de som fora projetado com excessiva e desagradável generosidade. A última fileira estava vazia. Com cuidado, evitando tropeçar nos degraus, foram até lá. Ufa! Finalmente, sentados. Pouco importa por qual capricho do destino estavam ali, lado a lado. O fato é que mal se conheciam. A um leitor mais ligado à modernidade, diríamos que o encontro era conseqüência de um papo na Internet. Os avessos ao progresso poderiam estar mais dispostos a aceitar a possibilidade de um encontro casual, durante um dia chuvoso, num piso qualquer do pequeno éden consumista, seguido de um convite formulado e aceito para alguns momentos no escuro, durante os quais o que menos interessaria seria a ação do filme. Ela avisara que não dispunha de muito tempo. Os deveres domésticos lhe davam algo como umas duas horas no máximo. Não poderia chegar atrasada. ’Sabe como é? Ciúmes, explicações, melhor evitar’. As poltronas eram confortáveis, o espaço entre as fileiras, suficiente para não provocar dormência nas pernas. Esperou que ela se ajeitasse melhor, para fazer o mesmo. Passou um braço em volta dos ombros dela e indiferente à trama que se desenrolava na tela, fez menção de chegar mais perto. Uma risada dela, aparentemente encorajadora, veio acompanhada de um protesto. – Assim não vai dar para assistir direito. – E precisa? Outra risada, acompanhada de um comentário ’mas que menino atrevido’. Atrevido, talvez. De menino, L. não tinha mais nada. Solteirão, desempregado, torrando para se manter, o que restava da indenização do último emprego – não conseguia recolocação, justamente por não ser mais menino. De olho numa herança, que viria mais cedo ou mais tarde, decidira ’não esquentar’. Bem apanhado, sem outro compromisso, a não ser com o próprio prazer, levava uma vida de monarca arruinado em exílio. Sem nenhuma ocupação e sem grande vontade de trabalhar, encontrara uma solução. O filão surgira por acaso, precisamente durante uma sessão de cinema. A inatividade profissional não lhe afetara a vocação natural de conquistador. Certa feita, no escuro de uma sala, L. pôde avistar a bolsa aberta da acompanhante. Para encurtar, terminada a sessão, ele conseguira efetuar, de maneira pouco ortodoxa, uma transferência manual de fundos. Era uma luz no fim do túnel. Com o tempo, descobriu possuir uma certa habilidade para acender essa luz, mesmo que isso envolvesse ter de abrir bolsas de acompanhantes menos relapsas. Pacifista convicto, nunca se imaginou na situação de usar a força. Era um adepto do triunfo da habilidade sobre a força bruta. Esses pequenos, e por que não dizer freqüentes, furtos lhe garantiam uma receita adicional, livre de qualquer tributação e para a tranqüilidade daqueles que poderiam ficar comovidos com um eventual esforço feito para superar as barreiras impostas por uma boa formação, sem nenhuma dor de consciência. Espírito metódico, para poder estar cedo em casa, concentrava suas atividades nas sessões da tarde, ficando o período noturno reservado à procura de vítimas via Internet. Caso a noitada se revelasse infrutífera, evento de ocorrência não de todo desprezível, descartava os contatos aparentemente sem futuro e, na noite seguinte, voltava à carga em terrenos mais promissores, nos quais sua paciência, não raro posta à prova, rendia-lhe o justo prêmio reservado à perseverança. Esse apego à realidade tecnológica não eliminava de todo o método da paquera tradicional. Lera em algum lugar que o contato virtual nem sempre consegue substituir o contato direto. A prática encarregava-se de lhe trazer a demonstração desse enunciado. É claro que, além das ’pescarias’ insatisfatórias, uma vez que não raras são as senhoras que saem de casa com pouco dinheiro e à bolsa aberta não se reprova o conteúdo, havia um outro inconveniente. Uma vez consumada a engenhosa manobra, L. precisava encontrar uma nova vítima, descartando definitivamente a anterior. Se nada é eterno, procurava consolar-se, então, um encontro era mais que suficiente. Mesmo movido por esses princípios inflexíveis, houve casos de advento de repeteco. Explica-se: Isso se dava sempre, quando, além de ter gostado da companhia, não houvera a menor chance de conseguir abrir a bolsa da paixão da vez. Dito isso, a única pessoa sem idéia da trama que se urdia, era a gentil senhora para a qual tudo não passava de uma escapada em adorável companhia. Na tela os heróis trocavam sopapos, auxiliados por apetrechos inexistentes ainda nas boas casas do ramo. Estava chegada a hora de agir. De natureza romântica, L. misturava alegremente o trabalho e o prazer. Em menos tempo do que o necessário para cantar o Hino Nacional na íntegra, um primeiro beijo arrancava um suspiro da senhora carente. Mais beijos, mais suspiros. Um belo dueto, depois da ária solo. Por um breve instante o braço em volta dos ombros acentuou a pressão e, por conseguinte, a mão dela veio repousar sobre o peito do conquistador. Até por uma questão de justiça, é preciso registrar que a mãozinha delicada se inseriu por dentro da camisa, afagando o peito do Casanova. Na hora do segundo beijo ela cravou, destemidamente, as unhas no peito dele, para depois retirar a mão, abraçando-o com ternura. ’Você, hein...’. Enquanto isso, pagando o tributo à objetividade, L. ficou tateando à procura da bolsa, colocada na poltrona ao lado. Heureca! Enquanto batalhava com o fecho, atividade na qual tinha já bastante prática, apesar de não ser nada fácil abrir, prospectar, retirar o necessário e fechar uma bolsa com uma mão só, ele empreendeu uma manobra destinada a distrair a vítima. Sua outra mão, momentaneamente ociosa, alisou com indizível ternura as coxas da convidada, por cima do tecido fino do vestido. Para demonstrar um interesse maior na empreitada, ele ousou até tentar colocar a mão debaixo do vestido. Ao protestar, tentando impedir a progressão muito rápida, afinal mal haviam decorrido dez minutos, tempo muito curto se comparado com a disponibilidade total, ela se contorceu, segurou a mão invasora, sussurrou uma doce reprimenda e deixou desguarnecido o outro flanco. Era chegado o momento decisivo. Rápido como uma tramitação de um processo em instância superior, abriu a bolsa efetuou uma breve inspeção tátil, evitou, por uma questão de princípios, a tentação do cartão de crédito e ao conseguir o butim, fingiu-se acometido por uma crise de espirro, disfarce ideal para colocar o bolo de notas no bolso do seu paletó, a pretexto de extrair um lenço. – Saúde, querido... – É alergia. Esse ar-condicionado deve estar atirando ácaros em mim. – O quê, querido? Não era o momento de debates científicos, ela que assistisse a mais programas culturais. – Já passou, não se preocupe. Resolvido o problema de caixa, justiça se faça, por não ser motivado apenas por interesse pecuniário, passou a dedicar o máximo de atenção à companheira. As paredes da sala, porquanto acostumadas a manifestações amorosas, registraram com respeitoso mutismo ataques e contra-ataques, com ambos exibindo uma técnica primorosa. Em determinado momento o ranger das poltronas veio dar um toque adicional de verossimilhança, chamando-os à realidade. – Querida, você é o máximo ! – Anjo, adoro você. Era o reconhecimento mútuo da excelência de ambos. – Querido, preciso ir. – Já? – É melhor, veja em que estado você me deixou. – Fique mais um pouco. Saímos quando terminar o filme. Que tal? – Prefiro sair ainda no escuro. De repente tem alguém conhecido na sala. Como fico? – Tem razão. E quando nos encontramos de novo? – Era a pergunta padrão, cuja resposta lhe era totalmente indiferente. Não tinha a menor intenção de encontrar novamente essa senhora carente que beijava bem pra burro. Ela se desvencilhou do abraço. - Agora, amor, você irá fazer um favor. Recolocará o dinheiro que tirou da bolsa. – E acrescentou com voz calma: - Caso não faça isso, armo um escândalo, chamo o segurança e digo que você está com meu anel num dos seus bolsos. Esse você não afanou. Eu mesma coloquei. Nota do Editor: Alexandru Solomon (asolo@alexandru.com.br), formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, é autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar” e o recente livro/peça “Um Triângulo de Bermudas”. (Ed. Totalidade). Confira nas livrarias Cultura (www.livrariacultura.com.br), Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Laselva (www.laselva.com.br) e Siciliano (www.siciliano.com.br).
|