Estava tremendo, espantado pela própria ousadia. Era uma loucura mesmo. Mal conhecera aquela mulher e estavam a caminho do apartamento dela. Caso típico de atração fulminante, teria dito ele, se alguém lhe perguntasse. Duas horas atrás, uma desconhecida com a qual cruzara por acaso na rua, num início de tarde chuvosa, e agora, sentado no carro dela, passageiro fascinado, ouvindo, como num sonho, algumas recomendações. - Temos que tomar muito cuidado. Acho que fiquei maluca. Nunca fiz isso antes. Nunca. Nem sei quem é você. - Uma risada acompanhou a constatação. Faremos assim. Vamos entrar pela garagem. Você vai se abaixar para que o porteiro não o veja e vamos torcer para que não encontremos nenhum vizinho na garagem. Se meu marido souber... ‘Se minha mulher descobrir...’ pensou ele. Neófito na arte da traição, rejeitara a sugestão de ir a um motel. Poderiam ser vistos por um conhecido e, mesmo se não fosse reconhecido, o extrato detalhado do banco iria acusar a escapada. Impossível sacar dinheiro, pois pela manhã já o tinha feito para devolver uma grana; pagar com cartão de crédito nem pensar. Foi aí que ela falou na viagem do marido e lá estava ele, vítima do encanto. ‘Não estou batendo bem’, concluiu entre assustado e ansioso... - E minha amiga que está me esperando para fazer compras - prosseguiu ela -. Terei de inventar alguma coisa. Tínhamos planejado passar a tarde inteira juntas. Vou ligar de casa para avisá-la. - Falava sem parar. - Não quero que depois ela dê um fora. Já pensou? Saímos muito com ela e seu marido, de repente ela me solta um ‘fiquei esperando feito boba por você’. Pago o maior mico. Indiferente às frases, que lhe chegavam em rajadas, ele a contemplava em silêncio. E se aquilo fosse um golpe? Gelou ao imaginar que poderia entrar num apartamento desconhecido e ser dominado pelos comparsas daquela mulher arrebatadora. Ou, pior ainda, poderiam ser filmados ou fotografados em plena ‘atividade’ e... tome chantagem. Isso sem falar na possibilidade de seu carro, abandonado no estacionamento do shopping, ser depenado, caso aquilo fosse realmente uma armadilha. Amaldiçoou, por uns instantes sua fraqueza. A seguir, olhou para o lado, e as hesitações se dissiparam. Valia a pena correr o risco. Oh, se valia! Por uns minutos parou de pensar, enquanto o carro enfrentava o trânsito pesado dos Jardins. Ser infiel era isso? Então nem valia a pena se preocupar. Não deixara de gostar da sua mulher. Era apenas uma viagem a um mundo escondido, repleto de promessas que aquele corpo maravilhoso, a seu lado, insinuava aos berros. O carro diminuiu a velocidade. - Agora, abaixe-se. Não foi preciso que ela insistisse. Ele já tinha se acocorado debaixo do painel e assim entraram na garagem. De onde estava pôde contemplar as pernas perfeitas e arriscou uma carícia. - Querido, fique quietinho. Vou acabar batendo numa coluna. Não consegue? Eu também quero. Seja razoável. Ai, pára! Foi quando percebeu que nem o nome dela sabia e que aquilo não tinha a menor importância. ’Idade do lobo. Deve ser isso’. Encolhido, sorriu. – Amore mio, nem sei o que pode estar pensando. Nunca fiz uma coisa dessas. Você me atraiu e perdi o juízo. Nunca traí meu marido. Acredita nisso? Para ele, isso não tinha grande importância. Quantas seriam as mulheres a se vangloriar de fazer da traição um hábito? No entanto, ficou mais tranqüilo. Uma vez presa na arapuca, por que iria a vítima continuar a desempenhar o papel de ‘mulher-casada-que-cede-a-um-impulso-incontrolável’? Não, com certeza, o temor era infundado, pensou enquanto acompanhava a contagem regressiva que marcava a descida do elevador. Esse chegou vazio à garagem. Bom sinal. No elevador, pôde sentir a vibração daquele corpo enroscado no dele. Beijo de quinze andares dá para perder o fôlego. Para esquecer dos perigos reais e imaginários, também. Atravessaram o hall de entrada, abraçados. Um apartamento por andar! Com certeza, não havia perigo nenhum. Estava num prédio de alto luxo, não num vulgar treme-treme. - Entre logo, - soou a voz convidativa. - Não tem ninguém em casa. É dia de folga da empregada. Tudo a nosso favor. Ai, me sinto como a Fabiana da novela. A luz de alarme voltou a piscar timidamente. Não por não saber quem era a tal Fabiana, mas por se sentir dominado por nova onda de temores. Mesmo se não houvesse ninguém no apartamento, bem que poderia ter uma câmera escondida. O velho truque do espelho. Atrás dele, o chantagista... Bobagem. Essa intranqüilidade era apenas fruto do nervosismo e da lembrança daquele filme com a Brigitte Bardot e Henri Vidal, raridade sem valor, descoberta por acaso na locadora. Sacudiu a cabeça, querendo espantar a preocupação. O que tinha a ver a presença ou ausência da empregada com um profissional da extorsão filmando. Para arrancar alguns trocados de um camarada como ele, não precisariam montar um cenário como aquele. Afugentou o pensamento. Ela o estava puxando em direção ao quarto, tão ou mais impaciente que ele. De relance, olhou para os móveis da sala. Tudo caro e de um bom gosto discutível. Aquelas poltronas eram mesmo horrorosas e deveriam ter custado uma nota. Coisas de novos-ricos. Entraram no quarto. Escuridão quase total. As cortinas deixavam passar um magro filete de luz. A cama acolheu os dois corpos enlaçados. Ela chutou para longe os sapatos, enquanto ele tentava se livrar da roupa. Mais rápida ela se esparramou na cama. - Mon Diê! exclamou ela. Como te quero. Venha logo. Não me faça esperar. - Não era hora de reparar no francês dela. Puxou-a com impaciência para si. No meio dos abraços, ela levantou a cabeça, apoiada num cotovelo, o busto nu recebendo em cheio um raio difuso de luz. - Estou ouvindo algo. - Ele nada ouvira. É bem verdade que naquele momento nem salvas de canhão teriam diminuído seu frenesi. Estancaram. Acostumada com os ruídos do apartamento, ela estava atenta. - Alguém está entrando... Meu marido! Como pode? Ele só iria voltar domingo. Você tem de desaparecer. Suma! - Que faço agora? Onde posso me esconder? Já estava se imaginando num armário, preso indefinidamente, como nas piadinhas que costumava contar. - Não. Não dá para se esconder. Melhor sair daqui. Fácil de dizer. Desesperado, conseguiu vestir-se com rapidez; apavorado, enfiou as meias nos bolsos de paletó, para ganhar tempo. - Como faço para sair? - Pela entrada de serviço. - Onde fica? - Eu lhe mostro. Rápido! Siga-me! Ela o deixou na cozinha, apontando a saída pela área de serviço e voltou correndo. Sem se fazer de rogado, olhou mais uma vez para ‘o paraíso perdido’ e saiu. Enquanto chamava o elevador, tentou por um pouco de ordem nas idéias e nos cabelos, igualmente em desalinho. Ao arrumar a gravata, ouviu uma estranha gritaria. - Parada! Quieta aí, isso é um assalto - seguido de uns gritos agudos de mulher, interrompidos por duas ou três vozes de homem, impossível lhe foi saber quantos. O que poderia fazer? Impossível voltar, mesmo se tivesse coragem para tanto. A porta estava fechada. Sem poder fazer nada de útil, pensou em si. Quem poderia culpá-lo? Como sair do prédio, com um assalto em andamento, sem ser confundido com um dos assaltantes. O mais urgente era sair daquele maldito edifício, sem ser notado. De duas uma: o zelador ainda não sabia do assalto, logo estaria ainda na portaria e aí seria preciso sair cobrindo o rosto de alguma maneira, já que não queria seu retrato falado afixado em delegacias; ou então, o zelador fôra neutralizado e a solução seria sair driblando a atenção de algum cúmplice dos assaltantes, a dar cobertura aos demais. De qualquer maneira, tinha que escafeder-se. Ficar lá parado, esperando que as coisas se resolvessem, seria loucura total. Resolveu dar um susto nos assaltantes e apertou a campainha com toques rápidos. Só faltava agora alguém chamar o elevador. Nada disso aconteceu. Os toques poderiam ter causado alguma inquietação nos invasores. O que mais poderia fazer? Pensou por um instante deter-se num andar inferior e de lá dar o alarme. Mas diria o que à brava gente que fosse abrir a porta? Como justificar sua presença, sem despertar suspeitas? Quem sabe, informar com ar de total desprendimento que antes de chegar em missão de ‘boa-vontade’ estivera no bem-bom com... e vinha prestar um serviço de utilidade pública informando que um assalto estava em curso. Impossível! Se não queria que o zelador visse seu rosto, ainda que de relance, poderia correr o risco de ser visto por alguns moradores, que poderiam para cúmulo dos azares tomá-lo por assaltante? Melhor entregar diretamente seu retrato à polícia com cópia para a sua mulher. Com o coração saindo pela boca, chegou à portaria de serviço. Por sorte não havia ninguém lá. Uma porta dava passagem para a garagem e outra, com toda certeza, para a saída principal. Instintivamente, vetou a garagem. Se houvesse um assalto do tipo arrastão, eles estariam lá, depenando carros ou carregando o butim. Caminhou rapidamente em direção à portaria. Estava deserta. Nem zelador uniformizado, nem bandidos ferozes. Ocorreu-lhe que poderia dar o alarme por lá. Correu até o interfone, arriscou um número. Alguns toques e, finalmente, uma voz de homem atendeu. - Sim? - Assalto no 15°, gritou. - E eu não sei, seu Mané? Logo, estavam ‘operando’ em mais de um andar. O jeito era sair correndo, pois agora eles sabiam que alguém sabia. Saiu voando e só parou de correr depois de virar a esquina. Enquanto corria, se deu conta de que se houvesse um pessoal ‘de apoio’, dando cobertura ao assalto, eles já o teriam visto. Talvez alguém já estivesse no seu encalço. Olhou para trás repetidas vezes, mas nada viu de suspeito. Pensando bem, quando a polícia fosse fazer perguntas, qualquer um dos transeuntes poderia informar ter visto alguém saindo em desabalada correria. Havia esse risco. Só que deixar de correr, aparentando calma, poderia ser fatal se alguém já o estivesse seguindo. Para não ser reconhecido pelo resto do mundo, pegou o lenço e fingindo uma série de espirros continuou seu galope, procurando um táxi. Milagrosamente, em menos de um minuto já estava a bordo de um, a caminho do estacionamento, para recuperar seu importado de segunda mão. Pegou o celular, para avisar a polícia. De repente, se deu conta de que, em assim fazendo, o motorista iria ouvir tudo, posteriormente poderia reconhecê-lo, seria arrolado como testemunha e a infidelidade não consumada iria chegar ao conhecimento... Decidiu esperar. Pensou na mulher. Não na dele e sim naquela criatura que, não fosse o encontro, poderia estar fazendo compras em companhia da amiga. Sentiu um aperto no coração. Decidiu parar o táxi. Com certeza, não estava sendo perseguido; já estava a mais de dez quarteirões do local. Pagou, desceu ignorando o resmungar hostil do motorista, inconformado com o encurtamento da corrida, pegou o celular e... hesitou novamente. Se fosse ligar, com certeza tomariam nota do seu telefone. Seria brincadeira de criança localizá-lo a seguir. Para variar, não pegariam os bandidos, e sobraria para ele. Teria de ser de um telefone público. Depois de encontrar dois orelhões depredados desistiu. Esgotado, sem saber quanto tempo havia se passado, julgou que de qualquer maneira, já era tarde demais para fazer qualquer coisa útil. Entrou numa loja, fingiu interessar-se por uma calça em liquidação e pediu para experimentá-la. Uma vez no cubículo, colocou as meias – só faltava ter de explicar em casa que decidira andar com as meias no bolso do paletó – examinou cuidadosamente o colarinho da camisa, com medo de encontrar alguma mancha comprometedora. Devolveu a calça e a duras penas, conseguiu livrar-se das insistências de uma vendedora solícita. Solícita até em demasia. Estava na hora do regresso do guerreiro ao lar. Beijou a esposa e, alegando cansaço e falta de apetite, desabou em frente à TV. A traição, apesar de não consumada, não o deixava olhar para a mulher sem sentir um indescritível desconforto. Nada descobriu a partir dos noticiários. Os horrores lá descritos eram outros. No dia seguinte, encontrou nos jornais um relato do audacioso assalto praticado na tarde anterior. Durante mais de quatro horas todos os apartamentos haviam sido ‘visitados’. Dinheiro, jóias, dólares, o de sempre... A polícia prometendo caça implacável aos ‘elementos’, evadidos em alguns carros dos moradores. Os carros abandonados já recuperados num bairro da periferia. Autoridades indignadas... Os discursos habituais quanto à insegurança e suas origens. Poucos moradores apresentaram queixa. O de sempre. Duas mulheres, vítimas de abuso, hospitalizadas... O estado delas inspirava cuidados. Dobrou o jornal. O fardo mais pesado que iria carregar doravante, não seria o da infidelidade. (Crônica do livro “Sessão da Tarde”, Ed. Edicon.) Nota do Editor: Alexandru Solomon (asolo@alexandru.com.br), formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, é autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar” e o recente livro/peça “Um Triângulo de Bermudas”. (Ed. Totalidade). Confira nas livrarias Cultura (www.livrariacultura.com.br), Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Laselva (www.laselva.com.br) e Siciliano (www.siciliano.com.br).
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