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COLUNISTA
Eduardo Souza
24/05/2010 - 09h00
Iperoig - literaticies da paulicéia
 
 
 
Reprodução 
  Capa do livro Iperoig, de Leão Machado.

Acabei de ler o livro Iperoig, do escritor paulista Leão Machado, que o Julinho Mendes me emprestou. A Iperoig de que trata o livro é a Ubatuba de 1945. O fato de, logo em seguida, ter lido aqui no O Guaruçá a crônica Ubatubância, também de autoria desse escritor, levou-me a algumas reflexões sobre a obra e sobre o escritor da paulicéia desvairada.

Li Iperoig motivado pela curiosidade permanente de conhecer aquela Ubatuba que refletia o longo período de decadência decorrente do fim do Ciclo do Café no Vale do Paraíba. O livro descreve a Ubatuba de 1945 (sete anos antes de eu vir com toda pompa ao mundo), que só começaria a sair do estado de coma a partir da década de 60, no século XX, época dos grandes e fundamentais investimentos do governo militar no país: no setor energético, na melhoria e na construção de rodovias, nas telecomunicações, na construção de escolas e na diminuição da bandalheira nas administrações públicas.

De Leão Machado sei que, ao término do governo JK (em que foi diretor do Serviço Social Rural, no Rio de Janeiro) passou a residir em Ubatuba até 1957, quando o governador Laudo Natel assumiu o governo paulista e o convidou para o cargo de chefe da Casa Civil. Além do livro "Iperoig", é autor de poucas e inexpressivas obras, como “Espigão de Samambaia”, “Uma Revolução em Marcha” e “Da Mobilização do Funcionário Público em Caso de Guerra”. Foi um dos fundadores da Sociedade de Etnografia e Folclore. Faleceu no dia 23 de setembro de 1976, em São Paulo.

Fazendo uma digressãozinha, sobre os escritores paulistas contemporâneos de Leão Machado, citaria o poeta e crítico Érico Nogueira: “os grandes nomes da primeira metade do século XX da literatura do Brasil, são, na esteira de Gilberto Freyre e ombro-a-ombro com o autor de Casa-Grande & Senzala, os nordestinos Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Joaquim Cardoso, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Alberto da Cunha Melo; ou os mineiros Carlos Drummond de Andrade, João Guimarães Rosa, Abgar Renault, Henriqueta Lisboa, Adélia Prado; ou ainda, finalmente, na velha Corte, Cecília Meireles, Vinicíus de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, Marques Rebelo, Dante Milano, e assim por diante; da Paulicéia instauradora, nada de comparável, certamente nada de maior, viria Macunaíma, uma curiosidade superfaturada, ou, no dizer, nas palavras do seu próprio autor, uma obra-prima que não saiu uma obra-prima.

Do livro Iperoig devo dizer que tanto a história, como o enredo e os personagens são, como diria... de uma dramaticidade um tanto quanto superficial e ingênua. A idéia de colocar Iperoig, a terra inóspita, como obstáculo ou personagem com quem a protagonista, a professorinha Lucila, tem de lutar para vencer o desafio de seu magistério, não é devidamente aprofundada. A história descamba para o tema de uma relação amorosa que caberia melhor num folhetim ou numa fotonovela, revistas muito em voga nas décadas de 50-60.

Lucila, normalista recém formada (a escola normal era freqüentada mais por moças e, dizia-se naqueles tempos, também conhecida como espera-marido), resolve iniciar sua profissão na longínqua, selvática e incivilizada praia da Enseada, na também longínqua, selvática e incivilizada Iperoig-Ubatuba. Vai de ônibus até Taquaral (Taubaté) e depois segue em direção ao litoral. Posso imaginá-la na jardineira que fazia o percurso naqueles tempos pela trilha dos índios, na Serra do Mar. Em Iperoig-Ubatuba, conhece o professor Alberto que a ajuda a se instalar na escolinha isolada da praia da Enseada e dá-lhe algumas dicas de como lidar com os indolentes caiçaras. Lucila se apaixona por Alberto. Vão se casar e viver felizes para sempre. Surge, então, Dulce, menina da pá virada, com quem Alberto tivera um namorico, filha de dona Rosaura, desesperada para conseguir marido para a filha. Dulce engravida do Joãozinho, o primo caiçara e vagabundo, que foge para a Picinguaba. A velha resolve dar um golpe. Acusa Alberto de ter "feito mal à filha", de ser o pai da criança. Alberto, que na história não come ninguém, é processado. Lucila não acredita na inocência de Alberto, mesmo depois do amor de sua vida ser julgado inocente. Alberto resolve "dar um tempo", larga o magistério e vai embora para a capital. Lucila fica em Iperoig-Ubatuba, em lágrimas... Argh.

Chatíssimo. Vale apenas pela descrição dos lugares daquela Ubatuba em que o presídio da Ilha Anchieta, sete anos depois, iria sofrer a famosa rebelião, em que havia muitos casarões já em estado de decomposição. Os demais personagens de Iperoig são claramente inspirados em personagens reais daquele tempo como, por exemplo, o seu Cardoso, dono do único armazém da praia da Enseada, que acredito seja o velho Maciel, o professor Teodorico de Oliveira (de quem meu pai era amigo) e dona Vidalina, casada como o dono do Hotel Iperoig, que o autor qualifica de "inspirada literata" e que não preciso dizer quem seja.

"As crianças eram pessimamente alimentadas. Que poderiam comer, em sua pobreza? O peixe, base de sua alimentação, quando alimento exclusivo, embrutece o homem." - diz o narrador à certa altura. É um equívoco achar que a alimentação do caiçara era exclusivamente o peixe. Havia as aves domésticas e as silvestres - macucos, jacus, jacutingas, urus etc. - caçadas de diversas maneiras, bem como animais domésticos como o porco e a cabra, além das caças que eram comuns na alimentação do caiçara: porco-do-mato, cotias, pacas, tatus, gambás, dentre outros. Fontes de proteínas na mesa dos caiçaras, desconhecidas por esses alienígenas que visitavam só as praias de Ubatuba, mas não adentravam os sertões. Havia problemas sérios de saúde pública, mas isso era comum na maior parte das províncias do Brasil daqueles tempos. Iperoig-Ubatuba um paraíso habitado por incivilizados caiçaras, comedores de peixe com banana verde e farinha. Aí o bicho pega. O cenário é paradisíaco, mas o povo caiçara tem preguiça de pensar e de agir, de quase completa abulia...

Cansei desses estereótipos, desse achincalhamento de ubatubanos e ubatubenses. Ubatubância é seu Leão?... Tá. O termo foi cunhado pelo seu amigo "Coronel" Helio é?... Oficial reformado da aeronáutica é? Então tá. O tal do "Coronel" Helio era conhecido como guarda-campo, do aeroporto Gastão Madeira. Talvez menos do que isso. Tinha muita gente que o achava um pirangueiro gangorra pacas.

Um dia alguém ainda haverá de escrever sobre os paulistanos e suas paulistícies para com os incivilizados e preguiçosos caiçaras, de quem compraram terras, por preços irrisórios e, em alguns casos, se apropriaram delas, áreas privilegiadas desse, tão decantado por eles, paraíso, como o Tenório, praia Grande, Toninhas, Lázaro etc. A paulistície foi tanta que chegaram a ter um prefeito paulistano para melhor defender-lhes os interesses na terra dos incivilizados ubatubanos.

O caiçara foi, antes de tudo, um bravo, um forte. Enfrentar a natureza hostil (não a natureza bucólica dos ambientalistas em que até os animais são gente), a geografia acidentada, as distâncias por terra e mar em frágeis canoas, o isolamento do resto do mundo, sobreviver e gerar uma cultura e ter uma identidade, uma comunidade, lutando com tempestades e tintureiras no mar e, em terra, com a saúva, os borrachudos, as onças e as cobras é coisa pra macho e não pra janotas da capital. O que é que esses paulistanos esperavam encontrar aqui naqueles tempos? Monteiro Lobato, em Cidades Mortas, com suas oblívions do Vale do Paraíba e do fundo do Vale tem mais competência literária para descrever esses cenários de decadência ocasionados pelo fim do Ciclo do Café nessas regiões. A Iperoig-Ubatuba decadente de 1945, descrita pelo Leão Machado, no entanto, foi, no período áureo das rubiáceas, de uma economia mais rica do que a que havia na cidade de Santos naquela época. Com o fim do ciclo, das exportações do café pelo porto da Prainha, Ubatuba é acometida de septicemia econômica e esquecida pelos governantes e pelo glorioso povo paulista. E assim ficou por muito tempo. As famílias que não puderam ou não quiseram emigrar permaneceram e enfrentaram a barra. Descendo dessas famílias que ficaram e tenho muito orgulho disso. Não é nenhum leãozinho que vai denegrir a minha estirpe, não. Iperoig é literaticie.


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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