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COLUNISTA
Alexandru Solomon
25/07/2015 - 17h01
Esconde-esconde
 
 

Aquilo já virara tradição. Todos os anos, comemoravam o aniversário da formatura. Amigos desde sempre, Augusto, Nivaldo e Arnaldo reuniam-se no mesmo bar, para reviver gostosamente os tais anos dourados da faculdade. Separados pelo que se convenciona chamar de ossos do ofício, haviam perdido o contato diário, mas os amigos desde sempre cumpriam ao pé da letra uma antiga jura de, uma vez por ano, beber umas e outras. Vamos nos entender. Havia outros encontros, porém, contaminados que foram pelo vírus do casamento, não fazia sentido — nem era prudente, aduziriam os maldosos — abandonarem freqüentemente as mulheres em casa, de sorte que, a idéia do encontro anual exclusivo precisou ser defendida ardorosamente. A História ensina que todas as causas justas — enfim, quase todas — acabam, cedo ou tarde, triunfando. As esposas compreensivas renderam-se à oratória inflamada do trio e concordaram em deixar uma noite livre por ano aos inseparáveis. A alforria era mais do que merecida pelos maridos exemplares.

A bem da verdade, eles haviam crescido juntos, no mesmo subúrbio e, desde aquela época, o triunvirato amealhara lembranças imorredouras, que iam desde inocentes alicantinas a pecadilhos mais ou menos confessáveis. Alunos esforçados, universitários talentosos, profissionais bem-sucedidos e, ultimamente, maridos irrepreensíveis. Mesmo se, desde priscas eras, os triunviratos foram marcados pelo equilíbrio entre os triúnviros, no caso deles Arnaldo exercia uma liderança inconteste. Era até uma questão de comodidade por parte dos outros dois. “Arnaldo resolveu que...” era o argumento decisivo em caso de ocorrer alguma improvável discordância entre os amigos.

Naquela tarde, após uma rápida troca de telefonemas, o voto de Minerva de Arnaldo foi, mais uma vez, desnecessário. Por unanimidade, ratificaram o local e horário do encontro: nove da noite, no Bar Afunda. Na verdade, a confirmação era totalmente supérflua. Nada mudara nos últimos quinze anos que os separavam da formatura. Era sempre a segunda sexta-feira do mês de junho, no mesmo bar. O fato de aquela sexta-feira cair no dia treze, em nada os desestimulou. Coube a Nivaldo a tarefa de pedir ao seu Dagoberto — dono do bar — que reservasse a “mesa de sempre”. Sim, porque não poderia ser qualquer mesa e, sim, aquela que já fora alçada à condição de estado-maior pelos, então, imberbes colegiais. O leitor sagaz terá percebido que os amigos já cultuavam o local antes de torná-lo palco da comemoração anual.

Como sempre, ou quase, Augusto foi o primeiro a chegar.

— Mestre Dagô! Que enorme prazer de mim se apossa, ao vê-lo vendendo saúde e bebidas.

— Não se esqueça de mencionar o salaminho, as almôndegas e os pastéis, meu amigo sempre brincalhão.

— Se for enumerar os petiscos com os quais nos conquistou, sem cometer nenhuma injustiça, estarei invadindo a madrugada. Logo, logo, meus amigos estarão aqui e teremos, como de costume, uma pá de assuntos importantes a resolver.

“O amigo sempre brincalhão” continuou tagarelando, até que uma providencial taça de vinho calou-o por um instante.

— À sua saúde, mestre Dagô! Espero que, um dia, me revele o segredo de sua inexplicável magreza. Depois de mais um cálice, iria me referir à essa sublime qualidade em termos mais elogiosos ainda. Talvez fale em vaporosidade.

— Menino... — Foram interrompidos pela chegada simultânea de Arnaldo e Nivaldo. Para satisfazer a curiosidade do leitor, vale consignar que os amigos tinham em comum a vulgarmente chamada ‘curva da prosperidade’, decorrência natural da vida sedentária à qual a assiduidade profissional os condenara.

Nivaldo era o mais alto — praticara basquete nos anos de faculdade, sem brilho especial — moreno, sorriso aberto. Devia às suas imensas sobrancelhas pretas o apelido de Corvinho. Arnaldo era uma espécie de negativo do amigo: loiro, olhos azuis, bigode fino — sempre cuidadosa e geometricamente aparado uma covinha no queixo. Em luta permanente com a balança, fazia de tudo para ocultar a obesidade, apelando para o talento de um dos raros e caros sobreviventes da classe dos alfaiates na cidade. Um pouco de exercício talvez fosse mais eficaz, mas onde encontrar tempo? Augusto, por sua vez, causaria o desespero dos profissionais dedicados à confecção de retratos falados. Sim, porque nada tinha de especial. Seu apelido, Anônimo, fazia jus ao aspecto, não ao seu espírito sempre alegre e descontraído. Arnaldo não tinha apelido – privilégio ou defeito dos líderes.

Mestre Dagoberto esmerara-se. Os elogios, merecidos, choviam.

— Aposto que esse vinho foi contrabandeado... — opinou Arnaldo.

— O senhor não pode falar assim, sou um comerciante honesto!

— ...diretamente do Olimpo, mestre Dagô — deixe-me terminar a frase antes de sentir-se melindrado.

— Pois serei sincero. Não conheço esse importador.

— Augusto, não foi você que lançou esse boato, ou será que possui algumas evidências para sustentar sua tese? Eu me limitei a repetir aquilo que me apresentou — Arnaldo insistiu.

— Pelo amor de Deus, senhores, vocês me conhecem desde sempre e, agora, mexem com minha lisura nos negócios.

— Não se preocupe. Somos advogados. Defenderemos você e, com sorte, conseguiremos poupá-lo do dissabor do encarceramento. — O tom sério de Arnaldo abalou Dagoberto.

— Eu juro que nunca ouvi falar nesse estabelecimento.

— Nós vamos orientá-lo. Se responder às autoridades fazendárias mantendo a calma, o quê de pior poderá lhe acontecer será... o que acha Augusto?

— Existe sempre a presunção da inocência, diante de provas meramente circunstanciais. O que me preocupa é a demonstração da habitualidade que a Promotoria usará. O caso não é fácil. Causa-me preocupação e desconforto. Profissionalmente, será um desafio e tanto.

— Mestre Dagô, existe uma luz de esperança. — Era a vez do Corvinho — O fato de termos tomado esse vinho torna-nos cúmplices da falcatrua.

— Mas não entendo mais nada. Como falcatrua? Que cúmplices?

— Sobre isso, caberá à lei decidir. O que me preocupa é o fato de a Justiça ser cega. Acho que se apresentarmos sólidas circunstâncias atenuantes, por tratar-se de réu primário — Arnaldo esforçava-se para não dar risada — o juiz na sua imensa... — Arnaldo teria continuado, mas as risadas dos outros o contagiaram.

— Seu Dagô, o Olimpo era...

— Não quero saber de Olimpo nenhum. Nunca fiz algo errado na minha vida.

— Fez sim.

— O quê?

— Deu ouvidos a um trio de bêbados.

— Ora, me pegaram de jeito. — Dagoberto enxugou o suor que porejava na sua testa — Deveria ter desconfiado. Todo ano ficam a me pregar uma peça. Mas será que nunca vão crescer?

— Peço que nos desculpe. Anônimo, você foi escalado para dar nele nosso beijo de arrependimento. Pode beijá-lo. A imprensa está lá fora, pronta para registrar o espalhafatoso ósculo — Apesar de ter chegado depois de Augusto, Arnaldo tomara uma séria dianteira no quesito ingestão alcoólica.

— Saia pra lá, diabo. E eu quero beijo de marmanjo?

— Seu Dagô, nós amamos você. Acha que não o teríamos acobertado? Temos caras de alcagüetes? — era a hora de uma casquinha tardia de Nivaldo.

— Só sei que levei um baita de um susto.

— Vamos fazer o seguinte — emendou Arnaldo, no seu papel inconteste de líder — vamos abandonar esse vinho delicioso e vamos um pouco de conhaque. Não se ofenda, mestre Dagô, mas ganhei essa garrafa de Rémy Martin Centaure. Não estou chamando seu bar de espelunca, Deus me livre e guarde, mas creio que não possui esse néctar na sua bem fornida adega. Traga, por favor, os cálices apropriados. Claro que pagaremos pelo serviço. Caloteiros não somos! Somos, turmaaa?

— Não.

E a conversa continuou. As vozes tornavam-se mais pastosas. Afinal, não estavam tomando água mineral. Os contornos pareciam cada vez mais indefinidos e uma doce sensação de bem-estar envolvia os comensais. Recordar o roubo das peras do quintal do Seu Ignácio deixou-os hilários. Mas o cansaço pedia passagem.

— Caramba, estou pegando no sono — articulou Arnaldo com alguma dificuldade.

— Eu não. Estou em plena forma — veio uma resposta engrolada do outro lado da mesa.

— Você está aqui, Corvinho.

— Ainda, Arnaldo.

— O Anônimo foi ao banheiro? — Arnaldo parecia preocupado com a verificação do quorum.

— Não, Arnaldo, fui visitar minha tia-avó.

— Por isso, não o vejo. Mas isso me dá uma idéia.

— Aprovado!

— Então, vamos!

— Vamos aonde, cara pálida?

— Vamos brincar de esconde-esconde no cemitério. Lá onde jaz a tia-avó do Anônimo.

— Tenho nome, sabia?

— Claro que sei, mas não me lembro. Vamos brincar de esconde-esconde no cemitério. A última vez que fizemos isso foi quando tínhamos dez anos.

— Vamos.

— Antes, disso, vou esvazair, esviazar, esvaziar... ufa!... meu cálice. Vocês tratem de se esconder legal, e eu os procuro.

Noite escura. Céu nublado. Arnaldo tateia o muro úmido do cemitério. Alcança o portão. Assobia. Outro assobio lhe responde. Mede forças com o portão. Insiste. O portão range docilmente e lhe dá passagem. Sabe que se der uns vinte passos para a direita, estará de frente para a aléia dos olmos. Hesita um pouco, mas a idéia foi sua. Já não pode recuar. Estranhamente aquela aléia deixou de ser reta, ou será por obra do Rémy? Quase tropeça num monumento enorme. Educado, pede desculpas. Apanha as flores no vaso mais próximo e empunhando o ramalhete caminha com dificuldade. Seus olhos já estão um pouco mais familiarizados com a escuridão.

Aproxima-se de um monumento e grita:

— Corvinho, vejo você. Augustoooo!

Nenhuma resposta.

A brincadeira já não lhe agrada mais. Não ousa confessar para si mesmo, mas está apavorado.

Continua vagando entre os túmulos. Para exercitar a vista tenta ler as inscrições. “À minha amada...” “Aqui jaz...” “Sempre presente na nossa memória Carlos Alberto da Souza 1885-1978”. Esse viveu um bocado. Quanto foi mesmo? Não consegue fazer a conta. Mais de cem anos, com certeza. Ou não? Continua, sem rumo.

Uma lápide chama-lhe a atenção: Arnaldo da Costa Ribeiro. Nossa! Seu nome! Prossegue a leitura: Nascido 11 de agosto de 1974 — sua data de nascimento — Coincidência? Não consegue evitar a leitura do resto — falecido tragicamente dia 13 de junho de 2006 Raios! É hoje! Examina o túmulo. Nenhum sinal de inumação recente! Então, como foi possível terem enterrado alguém, já terem colocado a lápide com esses dizeres? Não houve tempo. No entanto, é dele que se trata. Inexplicavelmente, ele já foi enterrado. Falecido tragicamente. Como assim?

Atrás dele, perfila-se uma sombra. Um estranho assobio se faz ouvir. Arnaldo não espera mais e sai em desabalada correria. Olha para trás. O vulto parece ter aumentado de tamanho. Ouve seu nome: “Arnaldo, vamos!” Pois, sim! Domina o pânico e continua correndo. É só agüentar alguns metros... Mas onde está a malsinada saída? Sente ou pensa sentir na sua nuca a respiração do ser estranho. Nem precisa olhar para trás. Um braço se abate sobre seu ombro, implacável, como o destino. Falecido tragicamente dizia a pedra tumular...

— Não! Largue-me! Vá embora!

Agora está imobilizado pelos braços fortes da criatura. Impossível medir forças com esse inimigo desconhecido. Sabe que levaria a pior. Sozinho, não terá a menos possibilidade de resistir. Grita: “Socorro”. Onde estão seus amigos, justamente agora, quanto precisa deles. Trata-se de sua sobrevivência. “Socorro!”

Ouve a risada estridente do outro:

— Arnaldo! Tá na hora!

Não. Ele vai lutar. Com um gesto desesperado tenta livrar-se da assombração. Está chorando. Abraça sua cabeça com os braços, tentando protegê-la. Realiza, no entanto que o golpe fatal poderá fulminá-lo em qualquer uma das partes do corpo que deixou desprotegidas. Será que o inimigo está armado?

— Por favor! Tenha piedade!

Sem esperança, sente a pressão que não cessa, alcança-lhe a nuca. É o fim... Uma última tentativa de resistência. Em vão. Assim estava escrito. Aquela pedra fria tinha razão. E se não tivesse promovido aquela brincadeira? Tarde demais. Não tem poder algum sobre o passado, e futuro algum lhe foi reservado. Junta o que lhe resta de forças e grita:

— Vá embora. Quero viver.

— Seu Arnaldo, os outros já se foram e eu preciso fechar o bar. Não posso deixá-lo dormir aqui. Cá está um copo de água. Vai precisar. Chamei um táxi.


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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