Naquela manhã plúmbea, Heráclito acordara meio zicado, podendo se dizer, pessimista mesmo, não que tivesse motivos concretos para tais sentimentos, mas a verdade é que amanhecera sorumbático, com a sensação de que, aquele não seria um dia qualquer, como os demais...

Lá no recôndito de seu âmago, algo lhe dizia que acontecimentos desagradáveis estavam a caminho. E é impressionante como os seres humanos já vêm equipados com essa pré-disposição de sentir na alma, ou em seja lá como for, em seu interior, quando alguma coisa está para acontecer e, creio quase com certeza, ser esta uma faculdade, da qual, somente o homem, dito seres racionais dispõem. A realidade é que, sentimos no ar quando algo está por acontecer, principalmente quando este algo está sobre a égide de cargas negativas.

Assim mesmo, Heráclito tomou seu banho matinal, depois sorveu maquinalmente o café, apanhou a valise e o guarda-chuva inseparáveis, colocou o chapéu de feltro e resoluto partiu para o trabalho.

Passou por pontes, viadutos, carros, trens, pessoas, contudo, absorto em seus pensamentos, não tomava conhecimento do movimento estressante ao seu entorno e quando chegou à avenida principal, já muito próximo de seu trabalho, de repente ao olhar despreocupadamente para o monitor de um televisor exposto numa loja, deparou com a cena mais imponderável que em sua vida já pudera um dia observar, tanto pela grandiosidade, como pela selvageria monstruosa que representava a malfadada situação, transmitida ao vivo pela TV, que naquele exato momento mostrava as duas torres gêmeas do World Trade Center sendo trespassada por um avião e estrondosamente ruindo, se dissolvendo, envoltas a uma espessa névoa de cimento, como se frágeis e fugazes castelos de areia fossem.

Embasbacado e não acreditando no que seus olhos viam no monitor da TV, Heráclito deu automaticamente meia volta e com passos apressados e nervosos, como quem a milhares de quilômetros, se dispusesse com ênfase salvar a única filha que possuía e que àquelas horas, deveria estar trabalhando no vigésimo segundo andar do World Trade Center, o fato é que andava a esmo, feito barata tonta, sobre efeito de inseticida, ou quem sabe, como alguém embriagado, anestesiado, pois não conseguia sentir o corpo, que fugidio, parecia não mais lhe pertencer, a boca seca e amarga, o estômago parecendo-lhe ao avesso e, feito morcego desgovernado sobre efeito de forte claridade, continuava sua absurda peregrinação, totalmente perdido, sem o mínimo senso de direção, até que um auto o pegou...

O pegou e o matou! Heráclito ficou então ali inerte, finalmente desprovido de quaisquer desespero, olhos sem vida, mirando o vazio, perdido em sua própria órbita, as feições, é bem verdade, ainda perpassavam algum misto de perplexidade e dramaticidade, curiosamente não havia sangue, a gravata revirada ao avesso, a valise, o chapéu de feltro e o guarda-chuva, não mais compunham sua indumentária, também os sapatos haviam desaparecidos, somente as meias negras, ainda mantinham-se solidárias nos pés do morto, em seu braço, uma marca branca no pulso, davam pistas de que naquele exato ponto geográfico do corpo, um dia habitara um relógio, no mais, passantes indiferentes que, iam e vinham, sem um mínimo gesto de comiseração pelo homem que jazia inerte no asfalto frio, nem mesmo um mísero olhar mais enternecido, eivado de alguma compaixão para com ele se dignavam.

Agora chovia, e os primeiros pingos escorriam pelo semblante impassível do morto e se acumulavam em seu derredor, ao passo que seu celular insistentemente tocava, dando um tom peculiar à surrealista cena e, finalmente depois de muito tocar um passante resolve por fim ao inusitado réquiem da morte, e atende a incômoda, vamos colocar assim, tentativa de comunicação com o homem que, àquelas alturas, se encontrava hirto, mortinho da silva.

Tratava-se de uma ligação dos Estados Unidos, em que uma tal Antígona com voz excitada pedia ao pai que não se preocupasse com ela no que tangiam às noticias do World Trade Center, pois que no dia anterior, fora acometida de um forte constipado, que a colocara na cama e, então, por este motivo, tinha faltado ao serviço e milagrosamente escapado da ira dos mesquinhos terroristas que haviam perpetrado o sinistro ataque às torres gêmeas.

Dizia ainda que já se encontrava melhor da gripe e aliviada pelo fato de ter se livrado da morte, ainda que muito abalada e indignada com tudo, face tantas vidas ceifadas estupidamente no famigerado atentado.

Falava e falava sem parar, não dando chance ao interlocutor para lhe dizer que seu pai, naquele exato momento, jazia inerte para sempre, atrapalhando o trânsito, no asfalto todo ensopado.

O certo é que, o rabecão demorava e, agora um defunto em situação de extremo atentado ao pudor, permanecia ali estendido, àquelas alturas, sem meias pretas, sapatos, valise, guarda-chuva, relógio, chapéu de feltro, calça, paletó e gravata, sendo que, em sua deferência nem uma só mísera vela a arder, somente a lhe garantir os pudores, uma reles cueca furta cor.