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COLUNISTA
Rui Grilo
02/10/2014 - 09h01
Romaria
 
 

Toda vez que ouço essa música, sinto um aperto na garganta e surgem muitas imagens e sentimentos relacionados ao meu pai. Quando me lembro dele, outra imagem que me vem é do Kafka de “Cartas ao Meu Pai” pois nossas relações sempre foram de medo, de alguém que se sente muito criança perto de um adulto poderoso, cheio de poder.

Essa sensação de medo também vem misturada com a sensação de arrependimento, de dor e de sensação de pecado, porque quando adolescente, a revolta contra os maus tratos me levou a enfrentá-lo e a vê-lo como uma pessoa frágil e descontrolada.

Os sentimentos de revolta foram sendo substituídos por uma tentativa de compreensão embora as marcas e a dor desses fatos tenham permanecido em meu coração.

Sempre me vem a lembrança de uma foto dele sobre um cavalo, coberto com um grande poncho que cobria cavalo e cavaleiro. Fico pensando na tragédia que representou em sua vida a mudança de Rancharia para Sorocaba.

Filho de um fazendeiro português, que havia estudado no Liceu Coração de Jesus, onde estudava a elite paulistana, onde se formavam contadores, numa época em que poucos eram alfabetizados. Seu pai e sua mãe eram leitores assíduos de jornais e uma de suas distrações eram as palavras cruzadas. Uma das irmãs estudara no Sion, e a outra, no Des Oiseaux, onde estudaram, entre outras, Ruth Cardoso e Marta Suplicy. A ele, coubera cuidar da fazenda e tocar o gado. Mais tarde, na década de 50, também tinha um açougue.

Quando perdeu tudo, minha mãe, que era analfabeta, resolveu se mudar para Sorocaba, uma cidade que, a seus olhos representava a perspectiva de uma nova vida, de uma nova Califórnia.

Sorocaba era conhecida como a “Manchester Paulista” pois lá se concentravam as maiores indústrias de tecidos de algodão e de linho. A perspectiva de trabalho registrado e com garantias trabalhistas atraia gente dos mais variados cantos do país e do exterior.

No entanto, para quem só havia trabalhado na roça, a primeira perspectiva de trabalho era de servente da construção civil ou do pequeno comércio. Assim, quem primeiro começou a trabalhar na fábrica de linho foi a minha irmã mais velha e depois a outra, as quais já cursavam o curso ginasial.

Em Rancharia, depois de uma briga em um clube, um dos desafetos mandou matar um cunhado do dono de uma grande indústria de Sorocaba. A viúva se mudou para Sorocaba e deu emprego para minha mãe. Através dela, o meu pai foi empregado como faxineiro na indústria de seu cunhado. Mais tarde, mais três filhos foram empregados, inclusive eu.

Uma das lembranças que até hoje permanecem é o pavor que senti quando fui levar almoço para o meu pai e vi aquela máquina imensa saindo fumaça. Na mesma hora retornei correndo e só parei quando atravessei o portão.

Imagine então, quem está acostumado ao horizonte amplo do campo, acompanhado de bois, de companheiros e do canto dos pássaros, trabalhando de acordo com o ritmo da mudança do dia para a noite, do sol e da lua, do claro e do escuro, do sono e da cavalgada, tocando o berrante para conduzir a boiada, ser guiado pelo apito da fábrica, pelo relógio e pelo chefe que controla o desempenho, preso entre as paredes, iniciando a labuta com o nascer do sol, e voltando para a casa com o cair da noite.

Foi uma mudança muito drástica e muito rápida. Ficou muito doente e nunca mais se recuperou.

Bem antes de morrer, me deu um relógio de bolso de prata, que foi lançado no centenário da Independência do Brasil e que tem no seu verso, em alto relevo, uma reprodução do Grito da Independência. Na cabeça do relógio, que serve para dar corda, há uma menção ao Dia do Fico. Nas beiradas do mostrador há o registro de quatro datas históricas. Pressionando a cabeça do relógio, ele se abre e atrás do quadro do “Grito” há uma imagem de José Bonifácio.

Esta doação mostra para mim um outro lado do meu pai.

Nunca vou esquecer


Nota do Editor: Rui Alves Grilo é professor da rede pública de ensino desde 1971. Assessor e militante de Educação Popular.
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