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COLUNISTA
Alexandru Solomon
20/08/2016 - 05h52
A bruxa e o hipocondríaco
 
 

Pouco depois de deixar o hospital, carregando num envelope fechado os resultados de incômodos exames, indis-pen-sá-veis antes da pequena cirurgia, que, por uma razão de decoro, deixara de confidenciar aos amigos, L. cessou de ser o mesmo. Transformação radical e instantânea. Em geral alegre, até debochado, passou ao extremo oposto. A transformação fora muito rápida. Dois minutos foram suficientes. A causa? A leitura agoniada dos laudos que acompanhavam a bateria de exames. Naturalmente, ao receber o envelope contendo os resultados, a primeira reação foi a de abri-lo e ler o terrível conteúdo, ao sair do saguão do hotel de muitas estrelas, ou hospital, se preferirem. Antecipou-se ao médico, cuja consulta estava marcada para dentro de cinco dias, mas quem consegue superar a curiosidade quando se é hipocondríaco assumido? Para simpatizar com L., importa saber quanto somos parecidos, não quanto somos diferentes.

Nem era preciso ser um entendido no tema para perceber a gravidade da situação. Um crescimento descomunal da proporção dos linfócitos atípicos, destacado em negrito, quadro compatível com leucemia, como viria a descobrir em seguida – para que servem os celulares? – ao “telefonoperguntar” a uma amiga farmacêutica especializada em análises clínicas, deixou-o aterrado. Tinha que ser com ele, logo ele? “Você tem certeza?” foi a pergunta vacilante. “Absoluta” veio a resposta seca e algo indiferente ou profissional – que importa? –, à qual se seguiu um silêncio definitivo e constrangedor. Restou a L. a tarefa de concluir o diálogo com um resignado: “Então, tá.”

Não fosse aquela maldita percentagem em negrito, e, sobretudo aquele telefonema à amiga, L. teria tratado com seu bom humor costumeiro a tal cirurgia – remoção de um pólipo localizado numa região onde as costas mudam de razão social. Mas como fazer troça daquela bobagem, com os dados assustadores de seu hemograma? Rebus sic stantibus, ou as coisas estando assim, voltou para casa, tal um fantasma aflito cujo único e imprescindível lençol branco estivesse retido na lavanderia por falta de pagamento. Seu aspecto impressionou dona Elvira, a diarista que, dia sim, dia não, fazia a arrumação do apartamento, salvo do tsunami do divórcio.

– O senhor está muito calado.

– Não é nada.

– O senhor está bem?

– Sim, sim.

– Precisa comer direito, está pálido e está emagrecendo – essa observação teve um efeito paralisante. Os efeitos da implacável doença já se faziam presentes. Dona Elvira percebera...

– Ando muito ocupado, estou cansado, só isso – melhor guardar o terrível segredo. De nada teria adiantado compartilhá-lo com aquela boa alma ignorante.

– Deveria comer um pouco mais. Não gosta mais do meu tempero?

– Que é isso, dona Elvira, gosto muito – dona Elvira abanou a cabeça e voltou ao trabalho, proferindo uma sequência de sons ininteligíveis, em tom que misturava incredulidade e reprovação. L. foi direto ao espelho do banheiro.

É impressionante como, em algumas pessoas, a possibilidade de ter contraído uma doença traz consigo a percepção da presença dos sintomas que lhe são comumente associados. Era o caso de L. Em questão de minutos, lividez, dor de cabeça, dor nos ossos e articulações, inchaço no abdômen e inchaço nos nódulos linfáticos fizeram-se presentes. Junte-se a isso a observação de dona Elvira, a primeira a identificar a perda de peso e a palidez. Sentiu-se o próprio Dâmocles, vendo o fio de crina de cavalo pronto a partir-se, permitindo a queda da famosa espada ainda suspensa por obra de algum milagre de duração efêmera, já não cabia dúvida.

Dois dias sem poder conversar com Ricardo, fiel amigo além de clínico geral e confidente discreto, pareceram intermináveis. Celular dando caixa: “No momento, não posso atender, deixe sua mensagem. Se não estiver aqui, estarei acolá, a não ser que esteja alhures. Deixe seu recado, retornarei assim que puder, se estiver com vontade.” Esse Ricardo estava se transformando num quase ex-amigo. Não cabe registrar aqui o teor dos recados deixados por L., por serem absolutamente impublicáveis. Ricardo que se danasse, não iria mais procurá-lo.

Noites mal dormidas. Igual número de tardes em frente ao computador, “googleando” em busca de alguma luz, mas conseguindo apenas ceder ao peso de novas perguntas, decorrentes do seu mais recente patamar de conhecimentos. Uma infinidade de detalhes para deixar maluco qualquer ser semi-informado! Pelo menos, podia falar com desembaraço sobre a vida secreta dos linfócitos. No mais, comprovou uma verdade impiedosa: “misturar fatos com suposições não gera novos fatos, mas contribui para instaurar o pânico. ”Com a insuportável ausência de Ricardo, restava uma única alternativa: aguardar a consulta. Os cinco dias faltantes já tinham virado três. Qualquer ser humano teria tentado antecipar esse evento de crucial importância. Seria injusto atribuir essa omissão a L., mas seria igualmente uma grosseira falsificação da verdade afirmar que essa iniciativa tivesse a menor probabilidade de sucesso. Depois de acalorados debates com seres misteriosos que ordenavam teclar 1 caso fizesse parte de um convênio médico, teclando a seguir 4 para marcação de consulta e, após ser informado de que “sua ligação é extremamente importante para nós”, coroar a Via Crucis teclando 9 para falar com “um dos nossos atendentes” – etapa jamais cumprida, uma vez que a ligação caía antes –, L. decidiu aceitar filosoficamente a desdita e esperar.

Esperar sem nada fazer era algo impensável. Fazer algo enquanto esperava era-lhe impossível. Com seu futuro reduzido a meses, talvez dias, haveria sentido dedicar-se a alguma atividade? De que adiantaria, por exemplo, tentar mergulhar na obra de Parmênides, ou aprender húngaro? Continuar nesse círculo vicioso de medo que o conduzia a um estado de desânimo maior era o que lhe restava após ter desistido de falar com o companheiro de farras de tantos sexo’clock teas. Não que Ricardo fosse o único amigo médico, mas era ele o repositório da confiança absoluta daquela alma à deriva, que, naquele estado, confundia o ponto de chegada com o de partida.

Leituras dos grandes clássicos, como Chapeuzinho vermelho, Ulysses e O que sei de Lula, em substituição à tentativa de entender Parmênides, em nada contribuíram para devolver-lhe a tranquilidade. Então, L. experimentou debelar a angústia ao optar por longas caminhadas, em busca da ação benfazeja de endorfinas. As tais endorfinas, possivelmente em greve, em busca da semana de 35 horas, não se fizeram presentes ou, se compareceram, não produziram resultado algum. A atividade não surtiu grande efeito, a não ser distraí-lo por poucos momentos; logo a seguir, o infeliz tornava a vergar sob o peso da horrível suspeita. Em resumo, a experiência foi catastrófica. Bastava cruzar com um transeunte qualquer para que, de imediato, brotassem perguntas: “Será que ‘partirei’ antes desta criatura?”... “antes deste ancião?”, “tudo bem que seja antes desta criança, mas desta senhora que mal consegue se locomover?”. No dia da consulta, dirigiu-se a pé para o consultório, segurando o envelope com os funestos exames e o laudo implacável. Enquanto se dedicava às apostas mórbidas de sobrevivência, notou a aproximação de uma mulher maltrapilha. Pela aparência, mais parecia uma sobrevivente da época das cruzadas. Nem teve tempo de formular mentalmente a indagação recorrente: “Será que a precederei?” A mulher o abordou:

– Moço, parece angustiado. Eu sei a razão – falava com uma voz estranhamente firme, em total desacordo com sua aparência miserável.

– Melhor para a senhora. Agora, se me der licença...

– Qual é a pressa? – Ela sorriu, revelando uma distribuição aleatória de dentes em diversos estados de deterioração.

– Estou chateado. Apenas isso.

– Eu posso ajudá-lo – parecia uma afirmação, ou teria sido uma pergunta? Difícil saber.

– Muito obrigado, dispenso – a mulher alquebrada não lhe deu sossego. Além de decrépita, determinada...

– Faz muito mal. Eu sou uma bruxa, tenho poderes incríveis.

– Compatíveis com seu guarda-roupa e seus cabelos desgrenhados – foi-lhe impossível evitar a grosseria.

– Não se fie nas aparências, elas não passam de um disfarce. Saiba que, se me beijar, adquirirei novas feições. Em nada lembrarei a ruína inspiradora da repulsa que mal consegue disfarçar.

– Sei. A-hã. Obrigado. Eu passo.

– Moço, não me subestime! Não sabe do que sou capaz se for provocada. Digo isso para seu próprio bem.

– Então, vamos seguir cada qual seu caminho. Que tal?

– Está duvidando de mim. Comete um grave erro. Não lhe inspiro confiança?

– Para ser absolutamente sincero, não me inspira coisa nenhuma.

– Duvida de meus poderes! – Havia uma revolta genuína nessa exclamação.

– Quer uma resposta franca? Não apostaria neles um... um bilhete de metrô usado.

– Está me agredindo. Seu sarcasmo poderá custar-lhe caro.

– Apenas disse o que penso. Vá lá que seja, subo a aposta para um bilhete válido.

– Sabe que, ao me desafiar dessa forma, corre um risco enorme?

– O único risco é o de perder meu tempo...

– Que já não é tanto! Eu quis ser prestativa – essa última palavra veio acompanhada de uns perdigotos – e fui desprezada. Segure-se, pois, ao desafiar-me, provocou minha ira. Lançarei uma praga! Fez de tudo por merecer isso.

– Terminou?

– Então, ouça. Preste muita atenção. Não adianta sair andando, a praga o alcançará esteja onde estiver!

– Uma praga de longo alcance – o papo estava ficando divertido. A anciã encolerizada conseguira fazê-lo sorrir.

– Vamos ver se conseguirá bancar o engraçadinho quando lhe revelar o dia de sua morte. – No ponto sensível! Sem querer, L. estremeceu. Ela fingiu nada notar. Impossível que não tivesse percebido.

– Será dia 14 de setembro. – Na mosca! Raios, hoje é 20 de agosto, pensou L. E se ela estiver certa? No creo en brujas, pero que las hay, las hay! Ficou sem reação.

– Então... sabe? – A pergunta idiota o deixou envergonhado.

– Sei de tudo. Espere, não terminei, o melhor está porvir! – L. já não sabia se saía correndo, se chorava, se dava risada. Uma fraqueza nas pernas o pregava no mesmo lugar. Indiferentes, pessoas de todas as idades passavam por eles.

– Há mais?

– Claro que sim. Disse-lhe o dia, não lhe revelei o ano.

Doravante, ao se aproximar essa data, ficará tenso, agoniado, desesperado. Um simples resfriado durante o mês de agosto será suficiente para que entre em pânico. Se passar pela data, terá alguns meses de sossego, mas à medida que setembro se aproximar, o sofrimento recomeçará. Naturalmente, não quer acreditar. Pena! – Uma jovem em trajes de corrida passou por eles, tropeçou, caiu, levantou-se, esfregou o joelho ralado e prosseguiu seu trote. Viu essa mocinha? Eu a fiz cair para que deixe de duvidar de meus poderes. Se aquele tombo era fruto de uma coincidência ou não, pouco importava. L. sentiu o medo invadindo-o. Um terror paralisante. Um filete gelado de suor correu-lhe espinha abaixo, rumo ao local da futura, e talvez supérflua, intervenção cirúrgica. Sorriso desdentado e triunfante da “bruxa”.

– Agora ficou menos arrogante, moço?

– Tudo bem. Vamos admitir que tenha esses poderes. Como faço para livrar-me do sortilégio?

– Vamos admitir? Está me fazendo uma concessão?

– Estou. Por uma razão ou outra, estou disposto a acreditar.

– Sábia decisão. Posso fazer várias coisas. Posso alterar a data de sua morte ou revelar-lhe em que ano se dará, embora, pela minha experiência, eu saiba que é bem melhor que ignore esse dado... Posso lhe dizer se neste momento há razões ou não para ficar preocupado. – Ela sabia, a miserável sabia! Aquele olhar em direção ao envelope contendo o laudo era a prova inequívoca dos seus poderes. – Isso tem um preço, mocinho.

– O que quer. Quanto quer?

– Quer me comprar? Não seja ridículo!

– Vamos acabar com isso. Qual é o preço a pagar?

– Quer esquecer tudo, nosso encontro e tudo que eu lhe disse? Deseja sinceramente que tudo que o aflige não passe de um falso alarme...

– Oh, sim! – A resposta veio numa voz chorosa.

– O preço pode lhe parecer alto, mas o alívio que terá de imediato o tornará insignificante.

– Chega! O que devo fazer? Como? Quando? Onde?

– Simples.

– Simples o quê?

– Bastará dar-me um beijo na boca. Eu me transformo, e o feitiço se dissipa em seguida. Já lhe disse isso, logo que o encontrei, mas não deu importância.

– Essa não!

– Como quiser – ela fez menção de se afastar.

– Espere, não poderia ser outra coisa?

– Outra coisa? Que outra coisa! Não aceito contrapropostas. Aí eu estaria fazendo pouco dos meus poderes. Não pretendo me depreciar.

– Depreciar!

Evidentemente, quem usa palavras assim não é ignorante. Talvez ela dispusesse de algum poder.

– Pare e pense – prosseguiu o ser execrável. – Avalie como se sentirá doravante todo este mês de agosto, sabendo que pode estar a semanas de sua morte. Por outro lado, se me beijar, a mandinga se dissipará. Será como acordar de um pesadelo. O mês de setembro, uma vez esquecida nossa conversa, porque ela se apagará de sua mente, não será diferente dos demais. Diante disso, ainda quer regatear? Para o hipocondríaco assumido, aquilo era demais. Capitulou e abriu os braços. Ela aproximou-se, triunfante. L. fechou os olhos e, reprimindo o asco, beijou a boca daquela mulher horrível. Ouviu uma explosão de palmas e de assobios, vindos da multidão que havia se juntado durante as tratativas. O envelope nefasto caiu no chão. Finalmente, ela o largou.

– Fiz minha parte, agora, faça a sua – olhou em direção à criatura decrépita que prometera transformar-se e nada notou, a não ser um brilho estranho no olhar.

– Em seguida. Antes uma perguntinha: Filho, diga-me qual a sua idade? Apanhe primeiro seu envelope.

– Cinquenta e seis anos.

– E ainda acredita em bruxas?

O médico o aguardava com ar constrangido:

– Espero que não tenha lido o laudo. Por causa de um erro no software do laboratório, em todos os exames houve uma inversão entre os linfócitos típicos e atípicos. Nem precisará refazer o hemograma. Foi algo inexplicável. Até pareceu bruxaria. Ninguém mais acredita em bruxas hoje em dia...


Nota do Editor: Alexandru Solomon, formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de “Almanaque Anacrônico”, “Versos Anacrônicos”, “Apetite Famélico”, “Mãos Outonais”, “Sessão da Tarde”, “Desespero Provisório”, “Não basta sonhar”, “Um Triângulo de Bermudas”, “O Desmonte de Vênus”, “Plataforma G”, “Bucareste”, “A luta continua” e “A Volta”. Nas livrarias Cultura e Siciliano. E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br.
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